Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
Pesquisa de geógrafa venceu o Prêmio Tese Destaque Unicamp 2023-2024 na categoria Ciências Humanas e Artes
Em 1493, durante sua primeira viagem ao que viria a ser a América, na região costeira do hoje Haiti, Cristóvão Colombo relatou em seu diário ter avistado três sereias. Frequentemente descritas em histórias da Antiguidade e por outros viajantes, essas criaturas surpreenderam o navegador não por supostamente existirem, mas por sua aparência, pois não fariam jus a sua mítica beleza. Muito provavelmente, o que o explorador observou naquele dia foram peixes-boi, espécie desconhecida dos europeus na época. O olhar do navegador, porém, estava tão contaminado pelas referências de seu tempo que Colombo nunca cogitou a hipótese de ter visto apenas um animal desconhecido.
Longe de caracterizar uma peculiaridade, a reação de Colombo perante as descobertas do Novo Mundo dialogava com as expectativas de seus contemporâneos. Durante a Idade Média, a crença em elementos míticos e fantasiosos se confundia com a realidade material, a ponto de os próprios mapas da época estarem permeados de criaturas monstruosas e terras lendárias.
“O historiador Jacques Le Goff criou o conceito de maravilhoso para se referir a essa cosmovisão do período. Trata-se de uma categoria que diz respeito tanto àquilo que seduz quanto ao que causa medo”, explica a geógrafa Deyse Fabrício, que defendeu um doutorado sobre o tema no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.
Um exemplo do maravilhoso medieval é a lenda do Reino de Preste João, registrada pela primeira vez no século XVII e mais tarde incluída nas histórias de Marco Polo e Jean de Mandeville. Segundo esse relato, existiria no Oriente um poderoso reinado cristão onde seria possível encontrar a fonte da juventude, o reino das Amazonas e diversos animais fantásticos. Seu soberano, suposto descendente direto de um dos reis magos, teria recebido o título de Senhor dos Senhores do próprio Jesus Cristo. Concebida no contexto das Cruzadas e da esperança cristã de encontrar aliados nos domínios islâmicos, a lenda atravessou séculos, passou a fazer parte de diversos mapas e alimentou a expectativa de navegadores como Vasco da Gama, que viajou à Índia munido de cartas endereçadas a esse rei.
Com base nesse arcabouço, Fabrício cita Le Goff para falar das permanências do maravilhoso oceânico medieval na cartografia da passagem da Idade Média para o Renascimento, questionando a ideia de que esse período significou uma mudança abrupta entre os modos de mapear de cada época.
Orientado pelo docente Antonio Carlos Vitte, do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra do IG, o estudo, vencedor do Prêmio Tese Destaque Unicamp 2023-2024 na categoria Ciências Humanas e Artes, foca, segundo a autora, o papel desempenhado por “detalhes” inseridos nessas obras à medida que o mundo “se alargava” e o oceano “passava por redimensionamentos”.
Isso porque, apesar do consenso sobre a passagem de um período histórico para outro ser um processo, e não uma mudança súbita, a geógrafa argumenta que as disciplinas de história da geografia tendem a abordar os mapas medievais como uma mera “curiosidade primitiva” antes de entrarem no que seria a “verdadeira cartografia” científica, iniciada no Renascimento e consolidada no século XIX.
“Na minha opinião não há um olhar apurado sobre os mapas medievais, vistos apenas como algo bonitinho. Mas eles contêm tantas histórias que a gente nunca vai entender perfeitamente o que elas significam”, argumenta a especialista.
A geógrafa Deyse Fabrício, autora da pesquisa: mapas medievais são tratados como “curiosidade primitiva” nas disciplinas de história da geografia
Concepção do ser humano
De forma geral, a cartografia europeia na Idade Média, período que se estende do século V ao XV, comunicava mais do que uma simples orientação geográfica. Naquela época, os mapas também representavam a concepção do ser humano sobre seu espaço no mundo, sendo possível encontrar em uma mesma esquematização elementos reais e elementos irreais, estes muitas vezes de inspiração cristã.
Os exemplares mais comuns desse modelo eram os mapas-múndi T-O (orbis terrarum), também conhecidos como mapas de roda, que tinham o objetivo de apresentar a conexão espiritual do ser humano com o mundo material. Em tais obras, a Terra se dividia em três partes – que teriam sido povoadas por cada um dos descendentes de Noé –, com Jerusalém, o local da “salvação”, ocupando o centro do mundo.
Uma das mais extensas dessas obras, o mapa-múndi de Ebstorf, nasceu por volta de 1240, mede mais de 12 m² e contém milhares de referências bíblicas, históricas e mitológicas. Representando o mundo como o próprio corpo de Cristo, a imagem traz em seu topo a cabeça de Jesus, onde estariam o Leste e a Ásia. Segurando cada um dos lados da roda estão as mãos de Cristo: à esquerda do observador, na mão direita de Cristo, está a Europa e também o Norte, enquanto à direita, no que seria a mão esquerda de Cristo, encontra-se o Sul e a África. Formando uma letra T, o Mar Negro e o Mediterrâneo se encontram para dividir os três continentes, e, na base do círculo, os pés do filho de Deus apontam o final do mundo ocidental.
“Esse mapa é muito interessante porque ele tenta reunir espaço e tempo em um só lugar. Então a gente vê coisas que aconteceram em diversos períodos diferentes, segundo a cosmologia cristã”, observa Fabrício. “Em cima estão Adão e Eva, a Árvore do Conhecimento e a Serpente. Mais abaixo, há os quatro rios que o Gênesis diz saírem do Paraíso para irrigar a Terra, mas há também Alexandre, o Grande, que teria viajado para o Oriente. É como se o fiel pudesse ir descendo no mapa e acompanhando a história da salvação, desde a cabeça de Cristo até seus pés, quando chegamos ao Juízo Final, ponto no qual termina realmente essa jornada terrestre”, descreve.
Entre as referências ao Jardim do Éden, à arca de Noé e à própria ressurreição de Cristo – que aparece saindo de sua tumba em Jerusalém –, é possível encontrar ilustrações de ambientes reais como a França, a Itália, a Espanha e o Rio Nilo, embora suas posições e seus formatos estejam geograficamente imprecisos.
Carta Marina (1539), de Olaus Magnus: a obra, que detém o maior número de monstros marinhos entre os mapas-múndi, serviu de base para outros cartógrafos
O que chama atenção, no entanto, é a representação do continente africano, habitado por anões, raças deformadas, quadrúpedes, centauros, entre outras criaturas “monstruosas”. “Isso é importante porque Jerusalém é o centro da cristandade e a referência do sagrado. Espacialmente, quanto mais eu me distancio dessa cristandade e vou para o desconhecido, mais os monstros, criaturas que desviam da norma, começam a aparecer”, destaca a pesquisadora.
Entretanto, apesar de terem predominado naquela época, os mapas no estilo T-O não foram o único tipo de cartografia medieval, afirma Fabrício. Nos últimos séculos daquele período, os trabalhos de Ptolomeu – matemático, astrônomo e geógrafo grego que viveu entre os anos 100 e 170 – começaram a ser “redescobertos” pela cristandade. O estudioso havia compilado uma série de conhecimentos baseados em cálculos matemáticos a fim de mapear o mundo e, sob essa influência, a produção cartográfica europeia passou a adotar um olhar mais objetivo, ao mesmo tempo que mantinha uma perspectiva mítica.
“Por isso, eu quis colocar uma lente maior no que ficou de mítico nesses mapas chamados de transição, que juntam várias técnicas diferentes e, portanto, não são nem renascentistas e nem medievais propriamente ditos”, esclarece a geógrafa, que elencou em sua análise obras dos séculos XIV ao XVI.
Dois dos mapas analisados foram o Atlas Catalão, de Abraham Cresques (1375), e o Mapa-Múndi, de Andreas Walperger (1448), que adotavam um padrão híbrido de descrição da Terra, com a simultaneidade de eventos bíblicos e greco-romanos, além da presença do maravilhoso geográfico, mas com a inclusão de cartas náuticas, divisões climáticas sazonais, linhas de rumo e rosas dos ventos.
O Atlas Catalão, por exemplo, foi composto por seis painéis retangulares e dobráveis centrados no Mar Mediterrâneo. Enquanto os dois primeiros contêm esboços de textos astronômicos e diagramas, os terceiro e quarto apresentam de maneira mais objetiva o mundo conhecido na época, incluindo a parte costeira da África até o ponto a que os portugueses já haviam chegado. Por outro lado, os painéis cinco e seis, que compreendem uma área mais distante da Europa, entre o Mar Cáspio e a China, está recheado de elementos maravilhosos. Além dos tradicionais motivos bíblicos e greco-romanos, é possível visualizar uma sereia – vista como um ser demoníaco pelo cristianismo – no Oceano Índico e coletores de pedras preciosas lançando feitiços em criaturas marinhas.
Monstros oceânicos
Ao longo da Idade Média, os mapas mostraram criaturas como sereias, baleias e krakens para representar os perigos de navegar nos oceanos, tendência mantida nos mapas de transição. No mapa-múndi Atlante, de Andrea Bianco, de 1436, é possível enxergar uma sereia e dois dragões alados nas águas do extremo sul, dando acesso ao que seria o portal do inferno.
Já em 1460, o mapa-múndi de Catalão Estense inclui sereias descritas como híbridos de pássaro, peixe e cavalo. Em meados do século XVI, Olaus Magnus elaborou a sua Carta Marina (1539), mapa que detém o maior número de monstros marinhos entre os mapas-múndi já produzidos. Essa obra serviu de base para diversos outros cartógrafos da época e incluiu, entre outras criaturas, uma baleia do tamanho de uma ilha – inspirada na ilha paradisíaca de São Brandão –, uma serpente gigante, patos nascendo em árvores e um monstro comendo uma foca.
De acordo com Fabrício, a presença dessas criaturas em mapas classificados como renascentistas indica não apenas a permanência do maravilhoso geográfico, mas uma questão geopolítica no contexto das grandes navegações. Especialmente na região do Atlântico Sul, a inserção de “monstros”, segundo a perspectiva europeia, funcionava como uma espécie de alerta para que nações adversárias não explorassem essas áreas, cheias de terras a serem ainda “descobertas”.
“Existe também um princípio chamado horror vacui, que é o medo de deixar espaços em branco no mapa. Então, em muitas dessas obras, os monstros são detalhes que permaneceram, mas que estão apenas adornando”, relata a especialista.
Outra teoria, no entanto, explica que, depois de um tempo, os monstros marinhos deixaram de ser vistos como criaturas que davam medo para se tornarem algo a ser conquistado. Em 1516, Martin Waldseemüller elaborou a Carta Marina Navigatoria
destacando o uso de linhas de rumo baseadas nos portulanos – uma espécie de carta náutica do século XIII que fornecia direções e distâncias entre os portos europeus e africanos. Essa obra, porém, inclui a figura do rei Dom Manuel I, de Portugal, montando uma criatura marinha ao sul da África. Nessa mudança de perspectiva, a ilustração aponta que a emergência de novas técnicas de navegação e o fortalecimento das redes de comércio possibilitaram o domínio dos mares pelos ibéricos.
Em o Mapa da América como a Quarta Parte do Mundo, produzido por Diego Gutiérrez em 1562, os monstros marinhos surgem tanto para endossar a ideia de domínio imperial quanto para alertar sobre os perigos dos mares. Próximo às Bermudas, por exemplo, vê-se Poseidon subjugando criaturas marinhas, enquanto sereias aparecem seduzindo marinheiros a fim de levá-los à morte no Estreito de Magalhães, local tido, na época, como o fim do mundo.
“O mais interessante é que figuras míticas estavam sempre sendo jogados para as bordas conforme o ecúmeno, ou o mundo, foi se alargando e se tornando mais conhecido. O Reino do Preste João, especialmente, foi sendo deslocado para a África no século XV.”
A partir do século XVI, quando a cartografia ptolomaica passou a predominar, diversos conceitos sobre o mundo físico e os seres que o habitam passaram a ser reavaliados mais sistematicamente, visando adotar um olhar empírico e objetivo sobre a natureza, incluindo o levantamento científico das espécies marinhas e terrestres existentes. Com isso, as formas de mapear o mundo mais alinhadas ao alegórico e ao maravilhoso foram gradualmente dando lugar a uma forma de mapear mais objetiva. “Já no século XVIII, esses mapas foram ficando rarefeitos. Mas é no século XIX que começa a cartografia tida como a ‘verdadeira’, que é a que estudamos hoje em dia”, finaliza Fabrício.
Por Paula Penedo
Fotos Antônio Scarpinetti / divulgação
Edição de imagens: Alex Calixto e Paulo Cavalheri