Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
O surgimento dos primeiros animais capazes de biomineralizar, ou seja, produzir esqueletos, supõe-se ter ocorrido entre 550 milhões e 539 milhões de anos atrás, marcando a transição do Período Ediacarano, da Era Neoproterozoica, para o Período Cambriano, da Era Paleozoica. A importância dessa transição é tamanha que ela também marca uma mudança de éons, a maior hierarquia do tempo geológico. No Éon Proterozoico, dominavam a vida na Terra os organismos unicelulares. No Éon Fanerozoico, do grego “vida visível”, a biosfera terrestre passou a ser caracterizada por uma grande diversidade e uma grande distribuição geográfica de organismos multicelulares, incluindo os animais.
Para descrever a história da Terra, cientistas estudam as posições estratigráficas das rochas sedimentares – uma espécie de empilhamento de camadas de rocha que pode guardar fósseis em sua composição. Quanto mais baixo nas camadas estratigráficas, mais antigo é o fóssil. A Cloudina sp é um dos primeiros fósseis de organismo multicelular biomineralizado identificado em várias partes do mundo, tornando-se um fóssil-índice do intervalo de tempo entre o final do Ediacarano e o início do Cambriano.
Um artigo publicado recentemente na Scientific Reports, uma revista do grupo Nature, apresenta um estudo no qual um grupo de pesquisadores brasileiros encontrou e datou fósseis de conchas em uma unidade geológica localizada abaixo da ocorrência da Cloudina sp. O achado sugere que uma população muito diversa de organismos biomineralizadores interpretados como animais já habitavam nossas terras antes da Cloudina, há 571 milhões mais ou menos 9 milhões de anos.
Dentre os pesquisadores envolvidos na descoberta está o docente do Departamento de Geologia e Recursos Minerais do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp Bernardo Tavares Freitas, cujo trabalho principal consistiu em estabelecer o contexto sedimentar e estratigráfico e contribuir com a datação dos fósseis. A datação teve papel importante na descoberta, pois permitiu aos pesquisadores confirmarem a posição estratigráfica das amostras. Freitas destaca o ineditismo dessa posição estratigráfica das conchas identificadas na Serra da Bodoquena, entre os municípios de Bonito e Bodoquena, no Mato Grosso do Sul (MS).
“Os fósseis não só foram encontrados abaixo da Cloudina sp, como ocorrem em rochas que têm uma idade radiométrica [idade calculada a partir do decaimento radioativo do urânio para chumbo] cerca de 30 milhões de anos mais antiga do que a idade até então atribuída para o aparecimento de fósseis similares no mundo”, afirma o pesquisador.
O reconhecimento dos fósseis resulta do trabalho que a pesquisadora Luana Morais realizou em seu doutorado e pós-doutorado dentro de um projeto temático liderado por Ricardo Trindade, do Departamento de Geofísica do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Morais estava à procura de organismos unicelulares capazes de biomineralizar quando identificou os novos fósseis no Mato Grosso do Sul. As amostras foram coletadas e estudadas pela pesquisadora entre 2017 e 2021.
De acordo com Morais, a descoberta traz implicações significativas para a evolução da biomineralizacão e para a correlação de rochas de mesma idade no mundo. Essa descoberta questiona, por exemplo, o uso de um grupo fóssil semelhante ao que foi descoberto, conhecido como small-shelly fossils (pequenas conchas fósseis), como marcador temporal do início do Fanerozoico. “No mundo inteiro, existem camadas de marcadores temporais que se baseiam no registro fóssil e auxiliam no entendimento sobre como a vida evoluiu. Não só isso: também sobre como a vida responde ao e interage com o ambiente. Existe uma coincidência de aparecimento temporal que os pacotes sedimentares fossilíferos ao redor do mundo costumam obedecer. Descobrimos, no entanto, que aqui no Brasil não foi bem assim”, afirma.
O registro da transição entre o Proterozoico e o Fanerozoico também pode ter sido afetado por questões ambientais locais, como a química da água do mar, o contexto tectônico e o clima no passado, fatores que podem ter favorecido a diversificação da vida e a preservação desse registro. Assim, a descoberta reforça a ideia de uma transição gradual entre as biotas do Ediacarano e do Cambriano.
Para chegar à datação de ~571 milhões de anos, Freitas trabalhou em parceria com o Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH Zürich), parceria essa selada quando o docente ainda estava na Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp. Pesquisadores do ETH Zürich submeteram lâminas das amostras de rocha a um feixe de laser acoplado a um espectrômetro de massa, aparelho que mede a quantidade de diferentes isótopos de urânio e de chumbo, permitindo datar a idade geológica delas.
“Essa idade de 571 milhões mais ou menos 9 milhões de anos, que para nós representa a deposição e/ou as primeiras alterações que o sedimento sofreu para se tornar rocha, foi calculada por meio de uma média ponderada de várias idades que obtivemos de diferentes amostras”, disse.
De acordo com Freitas, o material encontrado gerou uma quebra de paradigma. “Convencer as pessoas de que um grupo de pesquisadores brasileiros encontrou isso na América do Sul não é algo fácil”, afirmou o pesquisador. O grupo inicialmente teve dificuldades para publicar o artigo justamente por conta das implicações apresentadas. “O artigo teve sua primeira versão redigida em 2022 e só foi aceito em 2024 depois de os pesquisadores responderem a diversas perguntas de inúmeros revisores”, explica Morais. Estudos sobre os fósseis das conchas mais antigas do mundo seguem e em breve novos dados devem ser divulgados.
Por Eliane F. Daré
Fotos: Antônio Scarpinetti e divulgação
Edição de imagens: Alex Calixto e Paulo Cavalheri