Por Francisco Ladeira, docente do Departamento de Geografia, em Relatos da Jordânia - publicado no site da Unicamp.
A máxima de que a ciência é 5% inspiração e 95% transpiração encontrou seu exemplo prático em nosso trabalho na Jordânia. A rotina era acordar por volta das 6h, sair um pouco antes das 7h e às 8h estarmos diante de algum afloramento, já descrevendo e coletando amostras. O trabalho seguia até por volta das 16h ou 17h, com uma parada para um lanche por cerca de uma hora.
Na maior parte do trabalho de campo, os dias foram similares. Manhãs agradáveis, com seus 19°C-20°C, e depois, das 10h até cerca de 15h30, com temperaturas que chegavam aos 30°C (em poucos dias tivemos temperaturas superiores a 30°C). O sol a céu aberto maltrata o pesquisador, mas o outono e a primavera são os melhores momentos para o trabalho no campo, pois não estamos sujeitos às temperaturas de mais de 40°C no verão, nem às temperaturas abaixo de 0°C, com chuvas e eventuais episódios de precipitação de neve, no inverno. Em apenas um dia, tivemos uma leve garoa, mas nada que atrapalhasse o trabalho.
Parte do centro histórico de Amã; o trabalho de campo da equipe era feito, preferencialmente, em barrancos à beira de estradas
Como trabalhamos preferencialmente em barrancos à beira de estradas, começamos até a ficar conhecidos na área e também na cidade onde fizemos nossos lanches, pois a população já sabia que éramos brasileiros. Diariamente ganhávamos presentes, como quando no supermercado o caixa não cobrava a água ou o refrigerante (episódios semelhantes ocorreram em lanchonetes). Escutávamos sistematicamente os nomes de Neymar, Ronaldinho, Pelé.... Por vezes ficávamos cercados por crianças que queriam saber se éramos muçulmanos, se estávamos gostando da Jordânia, se estávamos do lado de Israel ou da Palestina. Quando o assunto ia nessa direção, sempre aparecia um jordaniano adulto para “dispersar” as crianças.
Retornávamos ao apartamento no final da tarde, depois das 18h, normalmente exaustos. Mas, ao contrário do que muitos pensam, o trabalho não se encerra no campo. No apartamento organizávamos todas as amostras e registrávamos e desenhávamos os perfis descritos em campo.
Esse trabalho também continuava com a leitura de artigos, pois, para algumas coisas que vimos em campo, buscamos interpretações em textos publicados, tudo acompanhado de discussões acadêmicas. Eu, o João e o Giancarlo dividimos nossas amostras – enviadas para a Inglaterra com o João, para Rio Claro com o Giancarlo e para a Unicamp comigo. Antes de retirar essas amostras da Jordânia, tivemos que fazer um relatório para o Departamento de Antiguidades.
Entrada de caverna no vale do Zarqa indicada por informações de agricultores e local de escavações em busca de restos homininios
As descrições detalhadas das rochas e dos solos que fizemos em campo determinaram os pontos exatos onde coletamos as amostras. Cada amostra foi fracionada em dois pacotes – uma que trouxemos conosco e outra que ficou na Jordânia, caso nossa bagagem fosse extraviada (por sorte, tudo chegou corretamente). Agora faremos uma sequência de análises que demandarão ainda alguns meses de esforço.
Estamos trabalhando com datações de urânio-tório na calcita (temos muitas crostas de CaCO3 que cimentam peças arqueológicas) e também com paleomagnetismo (sim, por incrível que possa parecer, nem sempre o polo magnético da Terra foi o norte). Sabe-se que a polaridade normal (atual) estabeleceu-se há pouco menos de 1 milhão de anos e ficou predominantemente invertida (se você tivesse uma bússola nesse período, a agulha apontaria para o sul) até 2,5 milhões de anos. Como esse período nos interessa, estamos utilizando esses métodos.
Também realizaremos uma série de análises químicas e físicas dos solos, além de análises micromorfológicas (observação do solo no microscópio) procurando identificar os processos de formação do solo e, portanto, as características ambientais em que se desenvolveram.
Além desse nosso trabalho, a equipe dos arqueólogos (Walter Neves e Fábio Parenti) passava o dia à procura de peças arqueológicas, especialmente núcleos (blocos de rocha contra os quais os hominínios batiam para retirar lascas) e as lascas em si. Essa busca ocorria nos perfis em que estávamos trabalhando, possibilitando associar nossas descrições com as peças arqueológicas. Por vezes eu também achava algumas peças, mas nem de perto encontrei a quantidade de materal que os olhos treinados do Fábio e do Walter identificaram. Eles encontraram e coletaram mais de cem peças seguramente arqueológicas.
Afloramento do Mioceno onde foram encontrados fósseis de conchas de água doce
A missão deles tampouco terminava no trabalho de campo. À noite precisavam lavar com escovas todas as peças encontradas durante o dia, organizá-las por perfis e níveis arqueológicos, criar um código para cada uma delas, pintar esse código em cada amostra e fotografar todas as peças em diferentes ângulos, para depois guardá-las em caixas. Em vários dias, o Fábio foi o último a ir dormir e, por volta das 5h, já estava trabalhando com as peças. Boa parte das amostras arqueológicas não sairá da Jordânia, ficando arquivada no Departamento de Antiguidades. Apenas as peças que melhor podem nos ajudar no estudo sobre esses grupos de hominínios puderam ser enviadas ao Brasil, com uma autorização especial. Depois de analisadas, deverão retornar à Jordânia.
O levantamento arqueológico mostrou-se extremamente produtivo. Não só pelas mais de cem peças coletadas, mas principalmente por termos encontrado tanto peças do olduvaiense (peças mais simples, que exigem técnicas mais rudimentares de confecção) quanto do acheulense (peças mais elaboradas, com técnicas mais aprimoradas de confecção). Também foram encontradas peças intermediárias, indicando que na área viveram grupos de hominínios distintos e que, naquele local, pode ter havido uma transição tecnológica no padrão de lascamento.
A partir disso, a importância arqueológica da área torna-se patente, indicando a necessidade de gerar um grande conjunto de dados em termos cronológicos e paleoambientais para melhor caracterizar as condições em que esses hominínios viviam e tentar descobrir como se expandiram da África para a Ásia, passando pela região que estamos estudando.
Parte de peças arqueológicas coletadas em um dia de trabalho; à esquerda um bifacies Acheulense recoberto por uma crosta de carbonato de cálcio
Apesar dos avanços realizados nessa etapa de campo, ainda sobraram diversas áreas de interesse, incluindo perfis em que foram encontrados fósseis de mamíferos.
Assim, neste momento, vamos acelerar todas as análises laboratoriais sobre as centenas de amostras que trouxemos, de modo a poder “guiar” outras coletas na nossa futura etapa de campo, já definida para ocorrer no próximo outono jordaniano. O trabalho está apenas começando.
Fotos: arquivo pessoal
Edição de imagem: Paulo Cavalheri
Leia mais:
Clima pode ter facilitado migração de hominínios da África para a Ásia
Novas coletas, novas informações
Confira mais imagens produzidas na Jordânia: