Por Lara Ramos
Pesquisadora associada ao Laboratório de Tecnologias e Transformações Sociais (LABTTS – IG – UNICAMP)
A Zona Costeira do Estado de São Paulo engloba 36 municípios, faixas extensas da Mata Atlântica e uma diversidade de territórios tradicionalmente ocupados. Os quatro municípios do Litoral Norte (São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba) e dois municípios da Baixada Santista (Guarujá e Bertioga) estão, desde o último dia 19, sob estado de calamidade pública. Segundo dados da Defesa Civil Nacional, são 4.066 pessoas desabrigadas ou desalojadas e 50 óbitos registrados.
A cidade com uma situação mais grave é São Sebastião, com o maior número de vítimas fatais e desaparecidos. Neste caso, o monitoramento da situação diária está sendo feito pela prefeitura, com divulgação dos dados e informações sobre a situação das estradas, pontos de atendimento médico, formas de acesso à medicamentos, linhas de crédito e auxílio financeiros, além dos locais de coleta de doações e abrigos.
O que chama atenção nos boletins divulgados é o número de instituições envolvidas em todas essas ações: as Secretarias de Estado da Saúde, do Desenvolvimento Econômico, e do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Governo de São Paulo; Companhia de Saneamento Básico (SABESP), Corpo de Bombeiros, Aviação da Polícia Militar e Polícia Ambiental; Hospitais Regionais (Caraguatatuba e São José dos Campos) e Hospital de Campanha da Marinha do Brasil; Centros de Apoio Educacional, Escolas Municipais, Escolas Estaduais, Núcleos de Assistência Social e Defesa Civil Municipal.
Diversas instituições públicas do âmbito federal, estadual e municipal articulando e executando ações conjuntas. Ações que ganham força e capilaridade com os atores não governamentais, como as igrejas, associações de bairro, organizações da sociedade civil e os movimentos sociais. Redes de solidariedade que resistem historicamente nesses territórios, são transformadas frente a cada novo desafio.
“O Fórum de Comunidades Tradicionais está reorganizando a sua Campanha “Cuidar é Resistir”, que atende comunidades tradicionais desde Mangaratiba-RJ até Ilhabela-SP. Agora o foco são as pessoas das áreas mais atingidas pela intensidade das chuvas em São Sebastião, unindo seu esforço humanitário às instituições públicas e demais participantes apoiadores das frentes de ação. Num primeiro momento conseguimos efetuar a compra de cestas básicas para a Aldeia Guarani Rio Silveiras [...] As cestas foram compradas pela Campanha através de recurso enviado à FUNAI [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] local, que efetivou a ação da compra e a prefeitura auxiliou na entrega” – Trecho retirado da rede social do Fórum de Comunidades Tradicionais, no dia 21/02/2023
A Campanha “Cuidar é Resistir” foi criada inicialmente durante a pandemia de covid-19, com apoio de diversas organizações para beneficiar 7 mil famílias de territórios caiçaras, indígenas e quilombolas do Rio de Janeiro e São Paulo. Essa e outras iniciativas de redes de solidariedade atuantes nos territórios tradicionais foram abordadas no Boletim do Departamento de Política Científica e Tecnológica em agosto de 2020. Cerca de dois anos e meio depois, essas redes se reorganizam nos territórios e atravessam as instituições para garantir direitos básicos.
É fundamental destacar o diálogo entre esses movimentos de base territoriais com a política institucionalizada. Como é narrado no trecho acima, as ações são organizadas em parceria com um órgão nacional (FUNAI) e um órgão municipal (prefeitura). Em contraponto com os movimentos recentes de antipolítica ambiental e de violação de direitos dos povos e comunidades tradicionais, essas ações fortalecidas e as visitas das Ministras Marina Silva, Anielle Franco e Sônia Guajajara, são de grande simbologia.
Responsáveis pelas pastas de Meio Ambiente e Mudança do Clima, Igualdade Racial, e Povos Indígenas, respectivamente, a presença das Ministras de Estado nos territórios atingidos é de extrema relevância. Primeiro, pela prioridade dada pelo Presidente Lula no acompanhamento do desastre. Segundo, pela quebra do processo histórico de invisibilidade dos territórios tradicionais. Terceiro, pela visão estratégica do governo de criar frentes de trabalho que articulam a questão climática com o racismo ambiental.
Invisibilidade construída dos Territórios Tradicionais e a importância da participação popular
Da Aldeia Renascer e do Quilombo Caçandoca em Ubatuba, até as comunidades caiçaras de São Pedro e Pontal da Cruz em Ilhabela e São Sebastião, são diversos processos específicos de ocupação territorial. O Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, iniciativa da FIOCRUZ com o Fórum de Comunidades Tradicionais, mapeou de forma participativa cerca de 100 comunidades situadas em toda a região. Povos indígenas, comunidades remanescentes de quilombo e caiçaras, vem configurando identidades-territórios ao longo dos últimos séculos. A visibilidade desses espaços, contudo, oscilam perante os olhos do Estado. Um marco nessa oscilação é o período de 1960 a 1980.
A construção do trecho entre Rio de Janeiro e Santos da Rodovia Governador Mario Covas, conhecida como BR-101, teve início em 1968. Prometendo desenvolvimento e progresso, a construção também prometia turismo e natureza intocada através do Projeto TURIS (Plano de Aproveitamento Turístico). Elaborado em fevereiro de 1973, o projeto pretendia equacionar o problema turístico da região.
“Populações abandonam periodicamente os ares carregados das cidades e dirigem-se em busca da natureza livre, para respirar ar puro e fresco, para divisar os contornos das montanhas e as diversas formas da paisagem [...] Nesse ponto nos confrontamos com a responsabilidade do Setor Turismo para com a manutenção do capital turístico natural. A necessidade ecológica de preservar a natureza alia-se à preocupação meramente econômica de não dilapidar o patrimônio que motiva a demanda no Setor” – Trecho retirado do “Projeto Turis”, 1973.
A expansão harmoniosa e equilibrada da região, visava a oferta da “natureza livre” de uma das maiores faixas de vegetação nativa do Brasil. A Serra do Mar e a extensa Mata Atlântica, com inúmeras praias “desertas”, eram importantes elementos para atrair a elite urbana e potencializar a construção da rodovia. Nas 19 Zonas estabelecidas pelo projeto, foram evidenciadas as vocações dominantes de banho, navegação, esportes náuticos, centro hípico, aeródromo e praia a aproveitar. Na dominação do espaço pelo silêncio, diversos territórios tradicionais foram invisibilizados.
O aumento exponencial no custo do trecho Rio-Santo em um intervalo de 4 anos, se dava pelo fato da infraestrutura conjugada: 47 pontes, 3 viadutos e 3 túneis, além de serviço de drenagem e conformação de taludes. Evidentemente, a narrativa de preservação ambiental do Projeto Turis não conseguiu se impor frente à realidade da construção deste trecho. “Quando o então presidente da Embratur, Paulo Protásio, expôs o Projeto a uma plateia selecionada, muitas das 250 praias catalogadas por este já não existiam mais”.
Com o trecho concluído e os impactos ambientais cicatrizando nos territórios – Celso Santos aborda quatro grandes registros de escorregamentos de encostas da Serra do Mar de 1940 a 1970 - iniciava-se o segundo ato: especulação imobiliária e caos fundiário. “Sem terra onde plantar sua pequena roça de consumo e sem seu mar, de onde tirava o ‘peixe nosso de cada dia’, o caiçara, expulso da posse, tornou-se um segmento marginalizado em nossa sociedade. Repetiu-se, e ainda repete nesta bela região costeira, o drama comum a milhares de brasileiros banidos da terra”, escreveu a jornalista Priscila Siqueira em 1989.
O saldo resultante da década de 70, plena ditatura militar, era a invisibilidade construída dos territórios tradicionais: proposição de um projeto de turismo do litoral para a elite urbana, com intencional apagamento das formas de uso e ocupação tradicional da terra; construção de infraestrutura de transporte intercruzando extensas faixas da Mata Atlântica, com impactos socioambientais diretos para os habitantes da região; e criação de uma unidade de conservação da natureza, o Parque Estadual da Serra do Mar, com apoio de fotografias aéreas que reforçavam as “belezas intocadas da região” e ocultavam a população local.
40 anos depois, os discursos de democracia para sempre, combate às mudanças climáticas, e titulação de terras, se reconstroem. São discursos que colocam os holofotes nas condições basilares para a garantia de direitos humanos e constitucionais: participação popular, terra e moradia adequada. Como aponta a nota de solidariedade do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra-Paraty-Ubatuba:
“As políticas públicas direcionadas ao planejamento urbano, ambiental e populacional de forma realmente sustentável e preventivo, tendo em vista as mudanças climáticas que se acentuam no planeta, devem ser urgentemente construídas coletivamente pelas instâncias governamentais municipais, estaduais e federais com a participação popular sólida e democrática”.
As redes de solidariedade mantêm os territórios visíveis e cada vez mais atuantes nos espaços participativos da política institucional. Como finaliza o Coletivo Caiçara de São Sebastião:
“Um dos pilares da organização social dos Povos e Comunidades Tradicionais é a Solidariedade, na roça em mutirão, na puxada de rede, no cerco, na puxada da canoa na mata. E nesse momento ímpar, toda a sociedade precisa se fazer SOLIDÁRIA com o povo de nosso litoral atingido pela chuva torrencial” – Trecho retirado das redes sociais do Coletivo Caiçara, 21/02/2023
Fica o convite para a comunidade interna e externa da Universidade Estadual de Campinas somar com as redes de solidariedade. Seguem as informações para contribuir:
Órgãos públicos:
- Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Igualdade Racial, e dos Povos Indígenas, e Marinha do Brasil (informações oficiais do Governo Federal sobre as frentes de trabalho em andamento): @mmeioambiente; @ministerioigualdaderacial; @minpovosindigenas; @marinhaoficial
- Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (Contas oficiais para recebimento de doações financeiras, divulgação de pontos de coleta): Instagram @saude_sp
- Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de São Paulo (Informações sobre as linhas de crédito disponíveis pelo Desenvolve SP): Instagram @desenvolvesp
- Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Pontos de coleta de doações): Instagram @sabespcia
- Prefeitura de São Sebastião (Boletins diários com dados e informações sobre vítimas, situação das estradas, pontos de coleta de doações, e conta oficial para recebimento de doações financeiras): Instagram @prefseba
Organizações da Sociedade Civil:
- Apoio direto às comunidades tradicionais, com arrecadação e distribuição de doações e suporte à articulação local: Instagram @forumdecomunidadestradicionais e @coletivocaicaradesaosebastiao
- Recebimento de contribuições financeiras para compra de alimentos e outros itens essenciais, informações sobre pontos de coleta: Instagram @coalizaonegrapordireitos; @nosongnospor; @voaproject
- Cadastramento de voluntários: Instagram @atados e link da Equipe Voluntária de Logística SOS Litoral Norte
- Apoio à cooperativa de reciclagem Maranata: Instagram @coopermaranata e link para vaquinha