A seca é silenciosa e atinge a maior parte da população baiana. É, no entanto, pouco valorizada pela imprensa daquela região e só amplamente divulgada quando ocorre em época tipicamente chuvosa ou quando não há recuperação hídrica. As notícias publicadas pouco impactam na geração de políticas públicas que propiciam a melhoria da convivência da população com a seca. A constatação é do geógrafo Rafael Vinícius de São José, que defendeu em fevereiro a dissertação “A difusão da informação de natureza climatológica na época da seca na região do semiárido da Bahia”, orientada pelo docente Roberto Greco, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Unicamp e co-orientada pela Pesquisadora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas a Agricultura (CEPAGRI), Priscila Coltri.
No estudo, o geógrafo concluiu que durante o período da seca, os meios de comunicação se encarregam de transmitir informações sobre o evento climático. No entanto, o assunto fica em segundo plano quando em meses consecutivos a precipitação ocorre abaixo da média histórica. Rafael estudou o semiárido baiano - região que apresenta um baixo volume de precipitação pluviométrica com má distribuição de chuva e que, em decorrência dessa enorme variabilidade, está propensa a ocorrências constantes de seca. Graduado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana, Rafael quis estudar a seca no semiárido baiano porque é um fenômeno recorrente naquela região com repercussão econômica, ambiental e social não só em sua área de ocorrência. “Quem está nas áreas de altas precipitações, como em Salvador, sente seus efeitos mesmo que de modo indireto”, disse.
Rafael analisou como os dois maiores jornais do estado da Bahia - Correio da Bahia e o jornal A Tarde - fizeram a cobertura do fenômeno climático num fragmento temporal recente (de 2012 a 2015) quando ocorreu a pior seca das últimas décadas de escala global. De acordo com o geógrafo, tal seca foi considerada por especialistas como um verdadeiro desastre natural para a região pela vastidão de danos causados.
Quando a seca ocorre num período naturalmente chuvoso, que vai de fevereiro a maio, há um aumento significativo dessas notícias. No entanto, quando chega a estação que é naturalmente seca, que vai de julho a outubro, existe um declínio do número das notícias. Isso é percebido claramente no período analisado por Rafael, que elaborou graficamente uma relação entre o total de precipitação e o número de notícias. Em 2012, o pico de notícias ocorreu no mês de abril, quando a precipitação estava bem abaixo da média histórica. A mesma anomalia negativa de precipitação ocorreu em fevereiro de 2014, quando também ocorreu um aumento das notícias. Já em 2015, o pico ocorreu em novembro.
Gráfico mostra a relação da precipitação e do números de notícias
“Quanto maior é a anomalia negativa em meses consecutivos de precipitação, demonstrando uma não recuperação hídrica, maior é onúmero de notícias. Eu considero isso um aspecto negativo porque a seca é um fenômeno recorrente do semiárido, e faz parte do ritmo climático daquela área. Discutir tais dados apenas quando se espera que chova, mas não chove, não tem eficácia porque precisamos investir na busca de estratégias de convivência com o fenômeno”, aponta Rafael. Segundo o estudioso, não há meios de se controlar a seca, de grande expressão espacial, que é um fenômeno que depende de fatores de macroescala, inclusive das interações atmosfera-oceano. “A mídia pode sim ser fonte orientadora para formulação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento e o crescimento da região”, alerta.
O pesquisador buscou contribuir com a discussão que existe sobre como os diversos tipos de mídia têm apresentado notícias relacionadas ao clima e ao tempo. “Percebo que a comunidade científica na área de climatologia tem cada vez mais se preocupado em como a mídia vem publicando as notícias”, disse. Segundo Rafael, há erros na abordagem feita pelaimprensa a respeito da seca. “O erro clássico é o de clima e tempo. Clima é uma condição da atmosfera que se produz por uma certa durabilidade. É o padrão registrado de um dado local, calculado, segundo a Organização Meteorológica Mundial, comdados medidos depelo menos 30 anos. Já o Tempo é momentâneo, é o estado instantâneo da atmosfera, ou seja, como estão os elementos meteorológicos (temperatura, precipitação, umidade relativa, etc) naquele momento. Os jornais apresentam tais conceitos como sinônimos, e não são”, destaca. Outro erro grave apontado por Rafael é a apresentação nas reportagens deestiagem e seca como sinônimos. “Esses termos têm significados próximos, mas não idênticos. A seca é uma versão crônica da estiagem. A estiagem é caracterizada pela redução do total de precipitação pluviométrica durante um curto período de tempo”, explica Rafael.
Outro erro grave destacado na dissertação é que as notícias dos jornais analisados atribuíam ao clima semiárido características de climas áridos e desérticos.“Sob condições de semiaridez, o semiáridobrasileiro é o mais chuvoso do planeta. O problema aqui não é a chuva. Chove pouco, mas chove. O que precisamos é de uma forma mais eficiente de captar essa água pluvial”, aponta.
Ainda segundo Rafael, as notícias sobre seca são alarmistas e sensacionalistas. A seca é adjetivada com termos usados nas manchetes que caracterizam o fenômeno como hostil, destruidor e castigador. O geógrafo também destaca que há uma espécie de personificação, elevando o fenômeno a elemento chave da política de combate à seca. Segundo Rafael, a maioria das notícias enfatiza o combate à seca e não a convivência com o semiárido. “O problema não é a seca, mas a adoção histórica de políticas públicas que visam combater o fenômeno que é natural daquela área. As pessoas precisam aprender a conviver com esse fenômeno e não o combater, para não ficardependente apenas de ações emergenciais do poder público”, destaca o pesquisador.
Ainda segundo Rafael, a seca não é um tema de interesse do público baiano, principalmente da população que reside em Salvador. As notícias são elaboradas a partir de dados quantitativos publicados por órgãos do governo, como a Defesa Civil, quando indica por exemplo a porcentagem de municípios que estão em estado de emergência.
Metodologia
Para coletar as notícias do período de 2012 a 2015, Rafael foi à Biblioteca Pública do Estado do da Bahia, que fica em Salvador. Depois dos dados coletados e organizados, ele analisou como a mídia aborda o tema, cruzandodados da precipitação da região. Após esse levantamento, retornou à Bahia para ouvir os jornalistas que lidam com esse tema.
Na análise qualitativa, ficou constatado que a forma como o assunto é abordado coloca o clima como o responsável pelos problemas locais. Na mesma análise, a seca de 2012 a 2015 foi relatada como a pior dos últimos 30 anos, mas não ficou claro ao leitor baiano o parâmetro utilizado para caracterizá-lacomo tal - se foi por intensidade referente ao déficit hídrico, por duração ou por extensão da área atingida pela escassez de chuva.
O outro lado
Os jornalistas entrevistados por Rafael relataram dificuldades para elaboração de notícias sobre temas climatológicos. Alegaram que a distância entre a sede dos jornais e a região de ocorrência do fenômeno assim como a limitação de recursos refletem na freqüência com que as matérias são produzidas. Apesar de contarem com apoio de cientistas, o acesso, em regra, é mais fácil a meteorologistas e climatologistas que lidam com as questões específicas de Salvador. Outra constatação feita por Rafael junto aos jornalistas é que a chuva, e não a falta dela, é o que gera mais notícias por conta de alagamentos e deslizamentos.
Durante seus estudos, Rafael teve dificuldade para pesquisar a cobertura da seca pela imprensa. Seu objetivo inicial era analisar a cobertura feita por emissoras de TV locais, mas seu pedido para acessar dados das emissoras foi recusado sem justificativa.
Rafael, que está cursando o doutorado em Ensino e História de Ciências da Terra (EHCT) e Geografia no IG, tem intenção de levar a pesquisa adiante. Ele vai investigar a vulnerabilidade dos pequenos agricultores à seca e a forma como eles recebem as notícias relacionadas à seca.
Leia no Portal da Unicamp.
Por Eliane da Fonseca