Noela Invernizzi
Dois dias antes do primeiro turno das eleições nacionais de 2018, o professor Marko Monteiro me convidou a escrever um pequeno texto para comemorar os 30 anos do DPCT. Ao pensar no legado do DPCT, como espaço pioneiro no país para a formação na área de política científica e tecnológica (PCT), a ideia era se perguntar sobre o futuro da PCT e sobre os desafios e oportunidades para C&T. O lúgubre prognóstico do resultado da eleição, logo confirmado, me encheu de um pessimismo doloroso para pensar o futuro, que enxergo como tremendamente difícil para a democracia, a manutenção de direitos fundamentais, e também para a PCT.
Por isso, decidi focar sobre o passado, e tirar a limpo algumas questões que, sem dúvida, constituem assuntos para pensar o futuro. No vou abordar a PCT em geral, mas examinar apenas um segmento dela, a política para uma área emergente, a nanotecnologia, que tenho acompanhado desde sua origem, nos últimos 15 anos.
Vou fazer esta breve análise a modo de ensaio, sem preocupação com citações e referências que estão contidas nos trabalhos que tenho publicado sobre o assunto.
Olhada através de alguns indicadores, a política de nanotecnologia pode ser considerada bem sucedida. O número de pesquisadores na área aumentou de uns 300, no início da década de 2000, para em torno de 3000 doutores, e mais de 5500 se incluídos os alunos da pós-graduação. Constituiu-se uma infraestrutura de laboratórios ampla e bastante atualizada no país, com destaque para grandes laboratórios com perfis e funções bem definidos. Há mais de 1200 grupos de pesquisa CNPq que investigam em alguma área da NT. A produção científica no campo aumentou substancialmente, com taxas acima do crescimento da produção científica nacional como um todo. Em torno de 400 empresas já integram a NT nos seus processos ou produzem nanomateriais e nanodispositivos, e metade delas faz sua própria P&D na área. Muitas dessas empresas foram estimuladas a fazer inovações em NT mediante subsídios não reembolsáveis e outros tipos de financiamento. Todos estes resultados foram obtidos apesar de uma forte instabilidade no orçamento dedicado aos programas de NT, com altos e baixos ao longo de quase uma década e meia. O virtual congelamento de recursos a partir de 2015, vale apontar, coloca todos esses avanços em risco de desconstrução.
Indo além desta história da política mais convencional, resulta interessante abordar alguns aspectos que me parecem entraves substanciais que permearam este caso, e que são provavelmente comuns a muitas áreas da PCT nacional. Trago, para isso, alguns elementos que se remontam às discussões nas aulas de Introdução à PCT, com o Prof. Amílcar Herrera, e outros que vêm de perspectivas que estavam em discussão nos espaços acadêmicos internacionalizados durante o tempo em que trabalhei neste tema. Das aulas do Herrera, destaco especialmente a questão da orientação da PCT para a sociedade, suas dimensões nacionais e internacionais, e a interdisciplinaridade, como caminho essencial para analisar e construir a PCT. Quanto às discussões no âmbito internacional, de 2000 em diante, destaco as novas abordagens de avaliação de tecnologias como o “real-time technology assessment”, a governança democrática de C&T, e as mais recentes conceituações de inovação responsável, todas as quais promovem um alargamento dos atores envolvidos na PCT.
Embora a entrada da NT na agenda da PCT e os primeiros momentos de sua implementação coincidissem com o primeiro governo de Lula, e toda sua retórica sobre a “C&T para a solução dos grandes problemas sociais do país”, a orientação da política de nanotecnologia foi concebida com foco na inovação e na competitividade (com parcial exceção no caso da saúde) –uma racionalidade predominante internacionalmente, que se impôs com muito mais força do que aquela no início dos 2000. Enquanto isso, organizações como a Unesco enfatizavam o potencial da NT como detentora de soluções para os problemas da pobreza, e países com desafios similares, como África do Sul, conceberam, ao lado do componente industrial, um componente social centrado em saúde, água e energia, na sua política de NT. Não estou com isto afirmando que os pesquisadores em nanotecnologia no Brasil não tenham se ocupado de questões com orientação para problemas sociais. Há pesquisas com essas características, mas não como resultado do estímulo da política (só um edital entre 2001 e 2013 enfatizou tal recorte). Esta falta de ações maiores orientadas para problemas locais foi, acredito, um desperdiço de oportunidades. Assim, por exemplo, somente em 2012 uma área de extrema relevância para o país e a região, as doenças negligenciadas, foi incorporada como prioridade na Iniciativa Brasileira de Nanotecnologia, último programa da política na área, cuja vida foi abruptamente cortada pelo impeachment e corte de recursos para C&T.
Por sua vez, a orientação para a inovação e competitividade foi bastante genérica, de forma que abrigou uma profusão de setores considerados relevantes, certamente impossíveis de atender desde um país em desenvolvimento com orçamento limitado, o que gerou uma pulverização de recursos. A influência do setor produtivo sobre a política de NT foi muito tênue, até irrelevante, de forma que este ator, apesar de formalmente convidado a participar, pouco direcionou a pesquisa por caminhos efetivamente demandados pelo setor industrial.
Como sabemos, a PCT é uma política fortemente emulada, e a de nanotecnologia também o foi. Uma comunidade científica cada vez mais internacionalizada, e submetida a uma avaliação de sua performance científica com impacto internacional, foi fortemente atuante não apenas na proposição da agenda, mas também nas diversas instâncias de implementação da política. Em boa medida, o problema de orientação referido anteriormente, tem a ver com o peso deste ator na política, que tem como ponto central de referência as agendas de pesquisa de países mais industrializados. Há ainda outra implicação disto, e é a escassa interlocução dos cientistas das áreas centrais envolvidas na NT –física, química, biologia, engenharias– com os das áreas sociais e sociais aplicadas, o que levou a uma escassa emulação local, e inclusive em muitos momentos ao bloqueio, de temas que estavam na agenda da PCT para nanotecnologia nos países mais industrializados. Refiro-me especialmente à incorporação da avaliação das implicações sociais, éticas, legais e de riscos para a saúde e ambientais acompanhando o processo de desenvolvimento científico tecnológico (avaliação em tempo real). Sobre esses aspectos a política de NT no Brasil praticamente não disse nada por 10 anos, pois muitos cientistas influentes tenderam a ver a avaliação de tais aspectos como contraproducente e oposta ao objetivo da inovação. Outros, certamente, ponderaram que a avaliação só poderia ser posterior ao efetivo desenvolvimento da tecnologia, pois ainda não há evidencias científicas suficientes, muito embora esse paradigma já estivesse fortemente questionado.
Assim, a diferença dos países tomados como modelo, a não consideração de tais questões fez com que a política de NT no país tivesse escassa penetração para além do MCTI e do MDIC. Aspectos que seriam objeto dos Ministérios de Meio Ambiente, Trabalho, Saúde, Agricultura, etc., e de agencias reguladoras não foram incorporados até 2013, às vésperas da crise final da política, e a pesquisa sobre aspectos essenciais para a avaliação da nanotecnologia ficou extremamente atrasada. A outra cara do mesmo problema é a escassa percepção que os diversos ministérios têm no Brasil da PCT como política meio, que deveria atravessar suas finalidades específicas, o que redundou em falta de sintonia afetando ações e programas de pesquisa dos vários ministérios.
Certamente, esta limitada atenção aos aspectos sociais, éticos e legais e riscos da NT não deve ser atribuída somente à visão de mundo dos cientistas “duros” e à falta de interdisciplinaridade no processo de elaboração da política. Da mesma forma que a escassez de atores participantes na governança da política de NT, ela resulta da frágil demanda social –de movimentos sociais, sindicatos, ou cidadãos em geral– para que tais questões sejam atendidas. Nesse sentido, a incorporação de conceitos como “governança democrática de C&T” ou “inovação responsável” –essencialmente produtos da cidadania científica mais desenvolvida da Europa, e em menor medida dos EUA– soa bastante descontextualizada para examinar no país o desenvolvimento de uma tecnologia emergente, ou se reduz apenas a uma expressão de desejo.