Renato Dagnino
A pré-história e a chegada do professor Herrera à Unicamp
Em 1977, para um seminário que situou C&T no projeto nacional da redemocratização que se avizinhava, e que foi organizado pelos que, na Unicamp e nos círculos de governo nacional-desenvolvimentistas, apoiavam este projeto, convidamos vários dos fundadores do Pensamento Latino-americano em Ciência Tecnologia e Sociedade (PLACTS).
Um deles, Jorge Sabato, aceitou o convite para estar uns meses conosco no ano seguinte na semi-empresa “incubante” de empresas nacionais mantida pela Unicamp, a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (CODETEC) onde aquele seminário havia sido concebido.
Outro, Amilcar Herrera, havia sido convidado naquela ocasião, dado seu trabalho como geólogo, para implantar o Instituto de Geociências (IG) e chegou por aqui em 1979. De esquerda, ele era conhecido na América Latina pela sua análise crítica da política de C&T e, em todo o mundo, pelo exercício contra-hegemônico de prospectiva e construção de um cenário viável e desejável compatível com a satisfação das necessidades básicas dos mais pobres, o Modelo Bariloche.
Voltar à universidade latino-americana e ajudar a preencher lacunas das geociências, como as de política mineral e metalogênese, e de política (policy e politics) de C&T, o levou a aceitar o convite.
Pesou na sua decisão a juventude de nossa universidade e seu potencial tecnocientífico. Ele poderia materializar-se em soluções coerentes com o futuro de justiça, equidade e responsabilidade ambiental que haviam sonhado os formuladores do PLACTS e que os colaboradores que Herrera foi reunindo queriam.
Organizar um espaço de práxis multidisciplinar e comprovar que era possível aproveitar esse potencial para enfrentar os obstáculos do subdesenvolvimento, da dependência e da desigualdade - fundamento a partir do qual se estruturou o marco analítico-conceitual do PLACTS - era o “caballo ensillado que iba pasando”. Um segundo fundamento, que o enfrentamento da realidade política lhe havia corroborado - o de que era necessário adquirir poder cognitivo para influenciar o processo decisório da C&T eivado de cientificismo e corporativismo -, fez com que formar uma equipe jovem e idealista que pudesse consolidar-se como um centro de pesquisa, extensão e ensino (nesta ordem) viesse a se transformar numa de suas obsessões.
Quando chegou da Science Policy Research Unit, onde estava capeando o temporal que os “bastones largos” promoviam no seu país, o ambiente na Unicamp pós-intervenção malufista havia mudado. Aqueles o queriam aqui pudemos oferecer-lhe apenas uma sala no barracão da CODETEC, aquele que até há pouco abrigou o IG. Completavam o seu enxoval quatro servidores: Eduardo Machado e eu, que éramos diretores - administrativo e técnico da CODETEC -, Lídia Ferreira, uma de suas secretárias (da qual ele dizia, que, de tão competente, se soubesse um pouquinho de geociências, roubaria seu lugar!). Herdamos, também, um fiel escudeiro, o Crispim, que pilotava um decrépito Opalão preto.
Muitos anos antes que a internacionalização da universidade entrasse na moda, Herrera soube utilizar seu prestígio para viabilizar a implantação daquele espaço de práxis emulando, para a área de C&T, a ideia do Modelo de Bariloche. Foi por meio do Projeto Prospectiva Tecnológica para a América Latina, apoiado pela Universidade das Nações Unidas e o International Development Research Centre (que já haviam financiado o Modelo de Bariloche e o projeto sobre Tecnologia Apropriada), que foi possível a atracação dos jovens mestrandos “escolhidos a dedo” para constituir a equipe do Núcleo de Pesquisas em Política Científica e Tecnológica (NPCT).
O início da atividade docente
A tentativa de atrair alguns dos poucos colegas brasileiros que haviam se doutorado no exterior para nosso projeto de iniciar a atividade docente de pós-graduação que o NPCT não comportava, e que envolveria a criação de um departamento, não foi bem-sucedida.
Seguindo o cronograma de implantação do IG, que previa a imediata organização da área de Economia Mineral, e que por varias razões não contemplava o ensino de graduação, foi criado seu curso de mestrado. Nele, uma disciplina obrigatória era a de Introdução à Política Científica e Tecnológica (PCT), oferecida também a outros alunos de pós-graduação.
A concepção e oferecimento dessa disciplina ficou a cargo daquela equipe que, quando as vacas engordaram, foi sendo contratada para o DPCT que absorveu o NPCT tornando-o desnecessário. Além do seu substrato ideológico mudancista, essa equipe tinha em comum a leitura do PLACTS, uma familiaridade com as ciências exatas apropriada para percebê-las como um tanto “desumanas”, e uma formação em ciências humanas suficiente para compreender que as “inexatas” eram essenciais para enfrentar o desafio de construir uma PCT democrática. Era esse o território cognitivo que nos permitia entender que, ao contrário dos colegas da FEA-USP, que consideravam a Administração de P&D empresarial a chave para o desenvolvimento, tínhamos que nos concentrar nos aspectos de policy e de politics da C&T.
Foram aqueles dois fundamentos - o de que era possível aproveitar nosso potencial tecnocientífico para enfrentar a dependência e a desigualdade, e o de que era necessário adquirir um poder cognitivo para influenciar a PCT de modo coerente -, que haviam produzido os conceitos, fatos estilizados, modelos analíticos e preceitos normativos que estruturaram o PLACTS, o ponto de partida da concepção da disciplina.
Indico a seguir entre aspas alguns desses elementos que constituíram o núcleo cognitivo daquela disciplina servindo-nos de guia e, de forma telegráfica, as correntes de interpretação do contexto em que se dava a interação tecnociência-sociedade e em que se desenrolava a PCT que foram “puxadas”, e formatadas para concebê-la.
O elemento relativo à “importância dada ao desenvolvimento autônomo e à integração latino-americana” puxou a análise de seus obstáculos históricos, socioeconômicos e políticos. O relativo à “escassa demanda social (e endógena) por conhecimento tecnocientífico” puxou as Teorias do Desenvolvimento Econômico e da Dependência. O relativo à “política explícita e política implícita de C&T” puxou conteúdos adscritos à área de Economia Industrial e da Análise de Políticas. O relativo ao “projeto nacional”, à área de Estado e atores sociais e formação da agenda. O relativo às “relações entre Governo-Universidade-Empresa (triângulo de Sabato)”, à área dos estudos sobre a universidade e a produção de conhecimento tecnocientífico. O relativo à “autonomia (e não independência) tecnológica” e da “diferença entre modernização e capacitação tecnológica”, à da História Social da C&T mundial e latino-americana. O relativo à “dependência cultural como determinante da dependência tecnológica”, à da Hegemonia e Cultura. O relativo à “construção de futuro”, à dos Estudos de Prospectiva e Planejamento. O relativo à “Tecnologia Apropriada”, à da construção social da C&T, do debate entre internalismo e externalismo e do questionamento à neutralidade e determinismo da tecnociência. O relativo à “autoimagem do cientista latino-americano” à da Sociologia da Ciência. O relativo às “implicações do desenvolvimento tecnocientífico na vida dos trabalhadores e das mulheres, e do meio ambiente”, à da Sociologia do Trabalho, à dos Estudos de Gênero, e à da Ecologia.
A criação do Programa
Ao conceber aquela disciplina de Introdução à Política Científica e Tecnológica para o mestrado de Economia. Mineral - com a serendipity do Herrera que iluminava um desconhecido caminho de volta, para a docência, e a irreverente multidisciplinariedade da jovem equipe - que inauguramos um peculiar enfoque ao nascente campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). Talvez porque partíssemos da realidade mais problemática, original e angustiante enfocada pelo PLACTS fomos capazes de materializar os complementos de problem orientation e policy orientation, e até de political orientation de que ele carecia para ingressar no nascente campo dos ESCT. Os quais, vale ressaltar também, por razões simétricas, não estavam presentes nos enfoques europeu - orientado por disciplinas de ciências sociais oferecidas por catedráticos - e também do estadunidense.
O fato de que foi por “cissiparidade”, atuando sobre essa disciplina, que foi concebido nosso Programa justifica muito do que se apresentou até aqui.
No seu primeiro semestre, o "plat de résistance" do curso de mestrado era a “disciplina do Herrera” que manteve o nome consagrado, mas equivocado, de Introdução à PCT. Nela, ele expunha magistralmente o marco analítico-conceitual do PLACTS, enriquecia-o com questões ambientais, de gênero, culturais, religiosas, etc., sobre as quais estava refletindo e difundindo em seus artigos de divulgação que mais tarde reunimos num livrinho. Ali, ele evidenciava os “ganchos” em que as outras disciplinas “penduravam” os conteúdos que haviam sido anteriormente (e continuavam sendo) puxados pela equipe e eram nelas abordados. Eram três disciplinas, de responsabilidade de seus integrantes e assumidas - formalmente ou de fato - pelos colegas doutores que se somaram à iniciativa e que enfeixavam de modo canônico esses conteúdos em História Social da C&T, Análise da PCT e Economia da Tecnologia.
O desenho do curso possibilitava que @s alun@s, a partir dessas quatro disciplinas, delimitassem seu interesse específico, escolhessem as eletivas e formulassem, de modo coletivo, mediante seminários e uma disciplina de metodologia de pesquisa em PCT, seu projeto de dissertação. O fato de que el@s possuíam formação diversificada e de que desconheciam nosso campo interdisciplinar nos levou a não colocar como condição de entrada a apresentação de um projeto.
A incorporação de colegas com maior titularidade, experiência docente e familiaridade com atividade administrativa, e a própria progressão daquela equipe fundante foi adicionando à agenda de pesquisa e ensino do Programa novos temas e abordagens. Seu tratamento se dava nas disciplinas optativas em que os alunos exploravam com detalhe seus temas de interesse.
O prestígio do Herrera foi decisivo para a aprovação do Programa no Conselho Superior. Frente à alegação dos colegas do então já prestigioso Departamento de Economia do IFCH, que consideravam que ele deveria ficar ali situado, pois tinha mais afinidade com sua área de trabalho, Herrera os surpreendeu. Ao invés de invocar algum parentesco com uma área das desumanas ciências exatas, ele disse: “é, poderia ser, mas a nossa equipe teve a ideia antes...”.
Sua liderança, a integração da equipe e os ares intelectual e político que então se respiravam contribuíram para que não se perdesse a originalidade do enfoque do PLACTS frente às experiências europeias e estadunidenses de aproximação ao campo dos ESCT. Foi aproveitando essa conjuntura que se manteve durante um certo tempo o enfoque, em vários sentidos - político, social e econômico - original e latino-americano, que marcou a concepção do Programa.
Um intenso trabalho dos sucessivos coordenadores do Programa e a opção por uma formação interdisciplinar e flexível permitiram que em pouco tempo, valendo-se do apoio dos órgãos de fomento nacionais e estrangeiros e da universidade, o Programa passasse a abrigar o primeiro curso de doutorado latino-americano a explorar o campo dos ESCT. Fato esse que possibilitou a formação de doutores que, na Argentina, Uruguai, Venezuela, Cuba e em nosso país, passaram a liderar a capacitação de profissionais do campo e a exercer atividades de gestão e planejamento.
A década que vai da criação do NPCT até o final dos anos oitenta foi marcada por um esforço de pesquisa e ensino orientado a conceber um olhar latino-americano ao processo de desenvolvimento tecnocientífico e a uma tentativa de orientar seu potencial para a consolidação de um projeto inclusivo e autônomo. Avançou-se consideravelmente na atualização, aprofundamento e alargamento do espectro de temas do PLACTS. Por ter sido formulado por cientistas duros - sem formação em ciências sociais - que desejavam uma policy coerente com sua orientação de politics, o aporte de uma equipe multidisciplinar com uma sólida formação nestas ciências foi bastante proveitoso. Ele permitiu a sofisticação do PLACTS na direção da concepção de um marco analítico-conceitual adequado a enfrentar os momentos descritivo, explicativo e normativo da PCT.
As mudanças nos contextos do Programa
O período que se segue é caracterizado por intensas mudanças com forte grau de coorganização. Nos contextos geopolítico internacional, de alteração do paradigma tecnoeconômico, no plano nacional, transformações das instituições públicas de ensino e pesquisa e, o que foi muito importante para a trajetória do Programa, do marco analítico-conceitual relativo à PCT.
O começo da década de noventa marca a chegada do neoliberalismo ao Brasil. Tardiamente, quando comparada a outros países latino-americanos, tem aqui início a abertura comercial, a privatização, a desnacionalização e a reprimarização no âmbito de uma crescente unipolaridade geopolítica e de uma desconstrução do projeto nacional-desenvolvimentista e dos fundamentos ideológicos e culturais em que se apoiara a redemocratização.
Dentre as implicações desses complexos processos que se estenderam por mais de uma década, importa destacar a perda de momentum que sofreram três dos vetores orientadores do Programa: o do papel do Estado como indutor do comportamento dos atores sociais, o da autonomia tecnocientífica e o da integração latino-americana. Em favor da brevidade, e por tê-los já analisado em outras oportunidades, me eximo de comentá-los. Apenas destaco o fato de que até mesmo a categoria de análise América Latina foi colocada em xeque. Que falar do “chavão” que propugnava a integração com países pobres e fracassados: ele era considerado ultrapassado, pois estaria impedindo nossa entrada no primeiro mundo.
Não posso, contudo, deixar de comentar um aspecto que, apesar de sua transcendência para esta retrospectiva, devido a sua especificidade, escassa visibilidade e caráter controverso, não tem sido analisado. Trata-se da adoção do marco analítico-conceitual da Economia da Inovação como um poderoso vetor de orientação do Programa.
Antes de comentá-la, permito-me a uma referência ao nascimento desse marco. Ele remonta à preocupação de economistas do primeiro mundo com o fato de que países carentes de uma infraestrutura científica e tecnológica sólida, estavam levando vantagem na concorrência global, que ganhava impulso com o avanço do neoliberalismo, em setores intensivos em tecnologia, contrariando as previsões e recomendações do modelo linear-ofertista.
Sua percepção era de que isso se devia a algo que transcendia o que conheciam como a ciência e tecnologia que até então se entendia como asseguradora do progresso econômico e social. Inspirados na figura demiúrgica de um empresário schumpeteriano que fora apresentado como capaz de gerar valor sem explorar seus trabalhadores e aumentar seu lucro graças à “destruição criadora” dos seus colegas conservadores, e dessa forma transbordar (ou derramar) desenvolvimento para a sociedade, eles forjaram um conceito - inovação - que hoje aparece até nos outdoors de cosméticos.
Entender o que era exatamente a inovação, onde ela de fato ocorria, o que a possibilitava, como fomentá-la, etc., passou a ser um dos objetivos centrais de uma corrente que, em função do apelo que tinha por confrontar a heterodoxia, e de sua elevada capacidade de descrever as estratégias inovativas de empresas e países, rapidamente se expandiu na esteira da insuficiência da teoria neoclássica e do pensamento marxista em refluxo.
A Economia da Inovação, dada a sua adequação ao contexto da globalização neoliberal, a mudança do paradigma tecnoeconômico que ela, não por acaso, potencializava, e a coerência com a nova relação de forças que sucedeu àquela da socialdemocracia nos governos de países avançados, logo foi por estes assimilada. Suas considerações explicativas e normativas que postulavam o favorecimento do privado em detrimento do público passaram a influenciar as políticas nacionais e globais relacionadas à C&T. Foi na esteira desse processo que a PCT passou a ser denominada Política de Ciência, Tecnologia e Inovação (PCTI).
A crítica dos economistas da inovação se assemelhava à feita pelo PLACTS ao ofertismo-linear e a sua denúncia do conservadorismo do empresariado latino-americano. Mas a semelhança que aparecia nos momentos descritivo e explicativo de sua análise não se estendia ao momento normativo. Enquanto o PLACTS insistia numa solução macro, socialmente orientada, pela via da ação do Estado e da política, sua proposta era uma solução a partir do nível micro, baseada no empreendedorismo. Em busca de um lucro diferencial, a empresa derramaria no nível macro, via os mecanismos do mercado, se o Estado não atrapalhasse muito e se os trabalhadores consentissem com o novo tipo de exploração que se desenhava, os benefícios sociais advindos de seu comportamento “schumpeteriano”.
Não por acaso, em pleno auge do ideário neoliberal, a Economia da Inovação, que atribui à empresa um papel central (afinal, na era ela o “lócus da inovação”?) no cenário em que se moviam os pesquisadores que no primeiro mundo se preocupavam com a relação tecnociência-sociedade e com a política cognitiva.
Foi surpreendente, embora explicável por quem percebe o processo de co-construção que opera entre a realidade, a ideologia, e o trabalho acadêmico, assistir como esse marco analítico-conceitual penetrou no campo dos ESCT dos países avançados. E como as agendas de pesquisa e, em seguida, de ensino foram sendo em função disso transformadas.
Mais surpreendente ainda foi perceber como muitos desses pesquisadores que possuíam uma ideologia socialdemocrata ou que se alinhavam com o marxismo passaram a adotar essas agendas cognitivas apesar da inadequação desse marco para tratar as questões que até então lhes preocupavam. Algumas delas, como as ligadas ao conflito capital-trabalho derivadas da propriedade privada dos meios de produção, à extração da mais-valia, a concentração e centralização do capital, e ao caráter antagônico do capitalismo que, em última análise, explicam o desenvolvimento tecnocientífico e, por inclusão, a dinâmica inovativa das empresas, foram ficando fora de foco até serem naturalizadas.
Ao omitir essas questões, a Economia da Inovação impedia sua análise, obscurecia territórios inteiros da realidade. Ao sugerir que a competitividades das empresas levaria a uma competição entre elas e entre os países que redundaria em benefícios para todos que habitavam a “aldeia global”, ela, implicitamente ou por omissão, relevava suas implicações sociais injustas e ambientais danosas. Não obstante, provavelmente devido ao vigor que adquiriu o neoliberalismo num mundo unipolar e à atração que exerceu junto à comunidade de pesquisa ansiosa por compatibilizar a potência do novo paradigma tecnoeconômico com uma estrutura produtiva obsoleta, a Economia da Inovação passou a ser a corrente principal daqueles pesquisadores dos países avançados.
Seu trânsito junto aos cientistas duros que participam da rede de atores sociais que sinaliza relevância para a comunidade de pesquisa, onde interatuam desde os militares até os “verdes” passando pelos empresários e feministas, fez com que esse marco analítico-conceitual passasse a ter influência crescente nas PCTIs e demais políticas cognitivas dos países líderes na CTI.
Ao ganhar força nessa rede o professor-empreendedor, valorizado pela sua capacidade para dialogar com os ex-alunos e atrair recurso público e privado para pesquisa (em que se amalgamavam ciência e tecnologia como tecnociência) e extensão (consultoria e treinamento), aumentou ainda mais a influência do inovacionismo que ele professa na orientação da agenda cognitiva (com destaque para a de educação e pesquisa universitárias).
Voltando à periférica América Latina para poder regressar ao nosso Programa, cabe destacar que também aqui, amparada pela percepção dominante da Neutralidade e do Determinismo da tecnociência que a coloca como universal, adaptada a qualquer sociedade e projeto político, aquele marco analítico-conceitual foi adotado e essa agenda passou a ser emulada. O fato de nossa condição periférica ter constituído uma rede distinta daquela dos países avançados - muito mais rarefeita e incompleta -, e que fosse hegemônico o papel da comunidade de pesquisa na elaboração da política cognitiva - talvez a que mais rapidamente busque absorver a modernização que deles emana - acelerou esse processo.
Também aqui se fortaleceu a figura do professor-empreendedor. Atuando como mediador entre a comunidade de pesquisa (à qual pertence) e uma empresa periférica (idealizada à imagem schumpeteriana, mas quase ausente de nossa rede) e presente nos dois lados do balcão onde circula o recurso público para a política cognitiva, ele passou a influenciar decisivamente o ethos das instituições públicas. A escassez relativa de recurso público, o efeito demonstração e a afinidade com os pares-líderes internacionais o colocaram também como mediador das organizações estrangeiras e supranacionais interessadas em aproveitar a neoliberalização desse ethos para aumentar o potencial tecnocientífico global necessário para atender a solução de suas agendas.
O modelo de PCTI resultante foi um híbrido adaptado ao processo endogâmico característico da nossa atipicidade periférica. Ele combina um ofertismo mal-agradecido que silencia a demanda cognitiva embutida nas necessidades materiais da maioria subordinada que paga os salários dos que elaboram essa política, um cientificismo míope e mimético travestido de neutralidade e universalidade, e um inovacionismo inconsequente que busca sem sucesso atender uma minoria privilegiada que, dotada de irrepreensível racionalidade, desdenha dos resultados que aquelas instituições lhes oferecem.
Esses processos geraram no ambiente em que se fortalecia o ataque neoliberal aos ideais de autonomia política, de justiça social e de integração latino-americana, um movimento que influenciou decisivamente nosso Programa. O marco analítico-conceitual que estava sendo concebido foi substituído por aquele que emergira nos países avançados. Nele apoiado, passou-se a ensinar e a pesquisar os temas e problemas que ele privilegiava. O que ficava fora do cone que ele iluminava - onde passou a situar-se o objetivo central da PCTI, de tornar competitiva (leia-se lucrativa) a empresa localizada no país mediante mais apoio estatal -, as questões que até então privilegiávamos, foram sendo deixadas de lado.
Quando estava ainda no seu início essa transição temática, ocorreu um outro movimento: a equipe do Programa deixou de contar com seu mais importante integrante, o professor Herrera, que faleceu em 1995. Sendo um dos fundadores de PLACTS, ele havia se engajado criticamente naquela sua atualização e cuidado para que o Programa não se desviasse dos seus objetivos fundantes. Eles, no seu entender, deveriam permanecer na agenda da democratização que, embora atribulada, permanecia em curso.
Esses dois movimentos geraram situações semelhantes àquelas que tendem a forçar mudanças organizacionais e que têm como desfecho mais danoso o prejuízo de desempenho das organizações. Ou seu desmembramento, como com alguma frequência ocorre com grupos acadêmicos. Por serem causa e efeito de transições como a que se verificou, a mudança na correlação de forças associadas às distintas propostas de orientação demandou um ajuste institucional que possibilitou evitar esses dois desfechos. É claro que com um sacrifício da proposta enfraquecida. Aceitá-lo, em conjunturas em que o contexto que se insere a instituição é também adverso e quando vários de seus membros estão mudando sua forma de pensar, só é tolerável quando os partidários dessa proposta adquiriram a resiliência e a confiança de que ela, por ser parte essencial do projeto de sociedade que querem construir será mais tarde retomada.
A reorientação das agendas de Ensino, Pesquisa e Extensão do Programa ocorreu com base nesse ajuste institucional. Apesar de contrária à sua arquitetura original focada na análise interdisciplinar da PCT (que deu nome ao Departamento e ao Programa), por ser coerente com a nova dinâmica do seu entorno, ela foi rapidamente estabelecida. Intencionalmente ou não, o fato é que ela interrompeu aquele processo de aggiornamento do PLACTS orientado à consolidação de um marco analítico-conceitual original.
Acompanhando a mudança de foco que ocorria no plano internacional (e, por extensão, nacional), que se foi orientando para a análise da dinâmica tecnoprodutiva liderada pelos conglomerados internacionais e da atividade inovativa da empresa situada na periferia (e da sua gestão de P&D), entendida como indutora de desenvolvimento socioeconômico, o Programa mudou bastante. Ressalte-se que influenciou também essa transição o afastamento da universidade pública brasileira de temas como os que anteriormente preocuparam a equipe do Programa. Em consequência, a característica a imprimida ao Programa, fruto do intenso trabalho de vários de seus professores, passou a estar apoiada no emprego do marco analítico-conceitual e dos instrumentos metodológico-operacionais da Economia da Inovação. Os alunos que foram entrando e sendo incentivados a com eles desenvolver seus trabalhos nos temas por eles privilegiados e a participar em projetos de pesquisa financiados por órgãos de fomento que igualmente participavam dessa dinâmica inovacionista, gerou um movimento autossustentado de expansão.
O modo como ocorreu a transição geracional, com a absorção de profissionais que, como muitos dos integrantes dessa equipe, completaram sua formação nos centros que irradiavam a agenda privilegiada pela Economia da Inovação, é mais uma peça que se encaixou na alteração da correlação interna de forças, da transição temática e do rumo que seguia a Universidade.
Mais além de qualquer juízo de valor acerca do resultado epistêmico desse processo, não tenho dúvida de que ele possibilitou ao Programa uma posição de destaque no cenário nacional, como comprovam as organizações públicas e privadas dedicadas à sua avaliação, e internacional, como atestam a participação em projetos e outras atividades em que ele compartilha com grupos de outros países.
Mas também sou forçado a reconhecer que esse processo, devido à proeminência que já havia alcançado o Programa no âmbito latino-americano e do papel que poderia ter desempenhado, teve resultados distintos dos inicialmente buscados. Ao facilitar o abandono da perspectiva centrada nos aspectos da policy e da politics relacionados à tecnociência latino-americana e na atuação do Estado como indutor estrutural de comportamento dos atores visando à transformação socioambiental, esse processo levou a que sucessivas gerações de formandos do Programa tendessem a emitir frequências sintonizadas com a ressonância hegemônica neoliberal.
Seria equivocado atribuir a esse processo o fato de que ainda hoje, quando comemoramos os trinta anos de nosso Programa, muitos dos quais transcorridos quando a coalizão política de governo impulsou algumas políticas mudancistas, não se tenha logrado alterar o caráter ao mesmo tempo e, paradoxalmente, ofertista, corporativo, mimético, distópico e, numa palavra, conservador, da política cognitiva. São justamente problemas decorrentes desse caráter que este texto chama a atenção para balizar a rota futura do Programa mediante sua identificação na próxima seção.
Antes de passar a ela, entretanto, não posso deixar de assinalar que várias outras abordagens e marcos analítico-conceituais (e seus instrumentos metodológico-operacionais), que emergiram ao longo deste período, por permitirem um diálogo com o que já estava na “caixa de ferramentas” do Programa, foram sendo nela sinergicamente incorporados.
Diferentemente da Economia da Inovação, eles foram contribuindo para enriquecer o enfoque do PLACTS mantendo a vigência daqueles seus dois fundamentos - o de aproveitar nosso potencial tecnocientífico para enfrentar a dependência e a desigualdade, e o de influenciar a PCT -, iluminando regiões por ele escassamente exploradas, aumentando a eficácia de seu marco analítico-conceitual e de seus instrumentos metodológico-operacionais, e sendo “puxados” para nossas agendas cognitivas de Ensino, Pesquisa e Extensão.
Esse diálogo, que foi essencial para mais bem entender e operar sobre nossa problemática, é caricaturado mediante um procedimento simétrico àquele usado para explicar a concepção da disciplina que originou nosso Programa.
Foi mediante eles que a nova sociologia da ciência e seu programa forte de Edimburgo, e os “estudos sobre o laboratório”, aguçaram nossa percepção de que a ciência era uma construção social que, apesar de mutante e negociável, era condicionada pelo ethos da comunidade de pesquisa. Que a abordagem da construção sociotécnica ajudou-nos a entender como grupos sociais relevantes fechavam no nível micro artefatos influenciados pelos seus valores e interesses quando era possível sua sintonia com os que atuavam no ambiente macro de um tecido sem costuras em que operavam as grandes organizações, e como era possível, aumentando a intensidade dos sinais emitidos por novos grupos no âmbito de processos de reprojetamento, alcançar nossos propósitos. Que a filosofia da ciência ajudava, com sua discussão sobre a neutralidade e o contraste entre os paradigmas da agrobiotecnologia e da agroecologia, para atuar frente a este e outros enfrentamentos que aqui se manifestavam. Que a filosofia da tecnologia justificava, historicizava e formalizava com propriedade a ideia de que os artefatos têm política e explicava o equívoco em que incorriam e o risco que corriam os que, ambicionando utilizar a tecnociência capitalista para materializar projetos políticos alternativos, aceitavam os mitos da neutralidade e do determinismo. Que os estudos de gênero, que revelavam um território que até mesmo o pensamento crítico sobre a relação tecnociência-sociedade havia ignorado, nos permitiam, inclusive, entender como a produção acadêmica das mulheres enviesada pela rejeição de valores que impregnavam a tecnociência assinalava um caminho legítimo para o questionamento de outros também prejudiciais ao cenário que queríamos construir. Que as análises da política cognitiva, que abarca além da PCTI a de ensino em seus vários níveis, e sua relação com outras políticas e o com comportamento da empresa dos países avançados, permitiam, ao explicitar por diferença o caráter atípico de nossa realidade, aumentar o poder explicativo, crítico e normativo daquelas que aqui fazíamos. Que modelos lá concebidos como o da hélice tripla que se debruçavam sobre o problema fundacional do PLACTS - a relação Governo-Universidade-Empresa - iam mostrando a necessidade de, passado o ímpeto neoliberal, “trazer o Estado de volta” e introduzir um quarto vértice - o dos movimentos populares - no triângulo de Sabato. Que a Teoria do Ator Rede nos permitia deslindar as controvérsias que surgiam no cenário da tecnociência nacional. Que as correntes associadas à responsible, grassroots e social innovation, e à open science, ao tratar, ainda que causando um certo ruído conceitual, aceitando nossos propósitos, mostravam as lacunas cognitivas que tínhamos que preencher.
Essa longa mas incompleta lista pode ajudar no processo abordado na próxima seção de, tendo por guia as ideias de problem e policy orientation, tornar nossas agendas cognitivas - de Ensino, Pesquisa e Extensão - mais aderentes à nossa realidade atual.
Os desafios do contexto atual
Esta última parte possui um viés normativo que decorre do intento de aproximar o Programa ao contexto socioeconômico e político brasileiro que envolve a CTI e dos desafios cognitivos que ele coloca. Por isso, como alertaram companheiros que leram uma versão anterior deste texto, ela pode ser entendida de forma ainda mais provocativa do que as anteriores. E, até mais do que elas, gerar um efeito desagregador contrário àquele que ele pretende: produzir um acordo acerca de como, numa universidade pública como a Unicamp, um Programa como o nosso pode contribuir cada vez mais para um futuro mais justo.
Esta parte não retoma aqui os temas, aqui já recorrentemente tratados, relativos ao marco analítico-conceitual e aos instrumentos metodológico-operacionais que influenciam a orientação das agendas de Ensino, Pesquisa e Extensão do Programa. Embora já se tenha uma considerável produção teórica e de informação factual acerca desses temas, gerada por seus integrantes (e por estudantes que por ele passaram) que participam do processo de atualização do PLACTS a que se fez referência, ela não é aqui abordada. O procedimento que se escolheu é, de certa forma, inverso. Por ser a política cognitiva uma inescapável síntese de aspectos políticos e ideológicos, esta última parte busca apontar um conjunto de problemas marcados por esses aspectos. A ideia é que sua consideração, emulando a experiência que originou o PLACTS, permitirá a definição daquelas agendas cognitivas e irá produzindo uma nova síntese analítico-conceitual coerente com seus fundamentos no âmbito do Programa.
Esse procedimento obriga que se inicie com uma incisiva consideração acerca da política cognitiva (de CTI e de educação) elaborada pela coalizão que ocupou o Executivo Federal de 2003 a 2016 cuja reorientação, ao contrário do que ocorria em outras áreas de políticas públicas, não implicava risco significativo à governabilidade. Fruto, entre outras razões, da inexistência de elementos conceituais e analíticos alternativos aos herdados pelo neoliberalismo e sua forma de interpretar a relação tecnociência-sociedade baseada na Economia da Inovação, não foi lograda uma ruptura qualitativa em relação a uma trajetória em que as atividades de ensino e pesquisa custeadas com fundos públicos se mantiveram distantes dos interesses e demandas cognitivas embutidas nas necessidades materiais das maiorias.
Agrava o cenário estrutural do contexto periférico que envolve nossa CTI a escassa probabilidade de que essas maiorias possam vir a participar das relações de trabalho capitalistas. É muito reduzida a probabilidade de que a parcela adicional aos 30 milhões de trabalhadores que têm carteira assinada por empresas (dos quais apenas pouco mais de dois estão na indústria manufatureira), que perfaz o contingente dos 160 milhões de brasileiros em idade ativa (dos quais 70% são analfabetos funcionais) venha a ser “incluída” na economia formal.
Reprisar o sucesso das estratégias do “emprego e salário” e favorecer a da reindustrialização subsidiada que seriam motorizadas pela indução ao investimento privado (que corresponde a 90% do total) não implicaria apenas a manutenção de injustas e já insustentáveis estruturas impositiva e a de remuneração do capital. Seria necessária a concessão de benefícios - legais e ilegais - adicionais aos que já usufrui a classe proprietária: 9% do PIB de serviço da dívida pública, 14% de sonegação fiscal, 10% de corrupção e 18% de compras públicas.
Mas ainda que o improvável fosse possível, que essas estratégias fossem bem-sucedidas e que houvesse o prometido transbordamento social, qual seria seu desdobramento no plano da CTI? A experiência latino-americana de cinco décadas mostra que a conjunção do caráter anômalo da PCTI, presente no mundo inteiro, com a sua atipicidade periférica torna improvável uma dinâmica tecnocientífica endógena. Por brevidade, cito apenas duas evidências concernentes à pedra angular dessa política - a relação universidade-empresa - que permitem corroborar essa afirmação.
A primeira, tem a ver com a importância do resultado desincorporado da pesquisa universitária para a lucratividade da empresa. Ao contrário do que declaram os interessados em superestimá-la ou que desconhecem a realidade, ela é, em todo o mundo, muito pequena. Para avaliar essa importância, uma boa maneira é considerar quanto do gasto empresarial em pesquisa é alocado em universidades e institutos de pesquisa para desenvolvimento de projetos conjuntos. Embora talvez não saibam (ou não queiram saber) os que aqui advogam que a relação universidade-empresa deve ocorrer por essa via, nos EUA, por exemplo, o que a empresa neles aloca é apenas 1% do total que gasta. Não temos informação análoga para o Brasil. Mas sabe-se, pelas sucessivas PINTECs, que apenas 7% das “nossas” empresas inovadoras declaram ter relação com universidades e institutos de pesquisa. E que, destas, 70% a consideram de baixa importância.
A segunda evidência tem a ver com uma marcante diferença entre a situação dos dois países. O resultado da pesquisa na universidade incorporado no pessoal formado ao realizá-la é essencial para a inovação e a competitividade das empresas estadunidenses, o que pode ser avaliado pela proporção, superior a 50%, dos mestres e doutores lá formados em ciências duras que são por elas contratados para realizar pesquisa.
No Brasil, a situação é flagrantemente distinta. Entre 2006 e 2008, quando as empresas aumentaram sua produção e lucro e quando o aumento do salário deveria induzi-las à inovação, formamos aqui 90 mil mestres e doutores em “ciências duras”. Desses profissionais, que, como no exterior, são aqui formados para realizar pesquisa em empresas, apenas 68 foram contratados para nelas fazer P&D.
Muitos outros desafios dessa natureza que o contexto brasileiro coloca no plano da política cognitiva, dada sua magnitude econômica, relevância social, importância para a soberania, segurança e autonomia do País, e a consecução de governabilidade de uma futura coalizão mudancista, mereceriam análise. Dentre eles, por demandarem a concepção de um marco analítico-conceitual contra-hegemônico para seu enfrentamento, destaco alguns que devem ser considerados pelo nosso Programa.
Do “lado da oferta” cognitiva, há o desafio de mudar a orientação da pesquisa e da formação de pessoal nas instituições públicas, hoje pautada pelo corporativismo da elite científica e cerceada pela racional aversão da empresa local, que beira à anorexia inovativa quando se trata de absorver o pessoal nelas formado para a P&D. Deve ser privilegiada a Adequação Sociotécnica, de modo cognitiva e economicamente sustentável, da tecnociência convencional, concebida em busca do lucro no âmbito da dinâmica tecnocientífica global. Ao buscar ampliar as iniciativas em que se está implementando a estratégia do “trabalho e renda”, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, na autogestão e na solidariedade, se estará dotando-a de potencial para receber o apoio que o Estado presta às empresas mas que tem sido negado aos empreendimentos solidários.
Do “lado da demanda” cognitiva, há que ter em conta que ao alavancar essas iniciativas mediante a concessão de subsídio - numa intensidade semelhante àquela que vige para as empresas, mas de tipo adequado às suas características (englobando desde o fomento à sua organização independente e o apoio creditício e tributário, até a alocação do poder de compra do Estado) – se estará capacitando-as a desenvolver, em conjunto com instituições públicas de ensino e pesquisa, processos de Adequação Sociotécnica que atendam às suas especificidades e interesses.
É essencial, para prosseguir, desfazer a impressão de que seria contraditório, em meio ao descalabro nacional (e global) em que vivemos, e dada a necessidade de manter o foco em derrotar o conservadorismo e retomar de imediato o desenvolvimento, propor uma perspectiva tão radical para a elaboração de uma política cognitiva como a que aqui se está expondo. Mas, dado que um de seus resultados seria a Adequação Sociotécnica da tecnociência capitalista na direção da Tecnociência Solidária, é fácil compreender o quanto ela se impõe. Ela não é apenas coerente com o projeto político mudancista de longo prazo fundamentado na autogestão, na propriedade coletiva dos meios de produção, numa concepção para “além do capital” das questões ambientais, de gênero, etc., que, por isto, demanda um radical giro analítico-conceitual na prática dos cientistas e tecnólogos nele interessados. Essa perspectiva se afigura como condição necessária para diminuir o sofrimento dos mais pobres e para evitar a catástrofe social que até mesmo o neofascismo mostra temer.
Evidenciada a inocuidade e até a inconveniência de favorecer os empresários na alocação dos recursos disponíveis para atividades de CTI, e sabendo que a elite científica que tende a seguir controlando a política cognitiva não se irá dispor a satisfazer as demandas cognitivas embutidas nas políticas-fim que interessam ao projeto mudancista e que abrangem, em cascata, as políticas setoriais e sociais referentes àqueles planos, condicionantes e oportunidades até chegar às metas estratégicas globais, quatro cursos de ação articulados se colocam como centrais para “sulear” o nosso Programa.
O primeiro, é o de precisar essas demandas cognitivas até o ponto de fazer com que venham a ser transformadas em agendas de pesquisa e formação de pessoal das instituições públicas e, num cenário desejável, em objeto de estratégias relacionadas aos planos econômico, social e político, e aos condicionantes e oportunidades colocados pelas questões ambientais e de dotação de recursos naturais.
O segundo, é, no decorrer desse processo, buscar envolver os integrantes da comunidade de pesquisa situada nas universidades, institutos de pesquisa públicos e órgãos de fomento dispostos a identificar e implementar essas agendas cognitivas e, à medida em que adquiram algum poder, viabilizar as condições humanas, materiais e financeiras que se fizerem necessárias.
O terceiro curso de ação se refere à Extensão. Esta, apesar de ser uma das três obrigações constitucionais da universidade, diferentemente das de Ensino e Pesquisa, não conta com uma disciplina de Metodologia de Extensão (destaco que devido a sua necessária ênfase em CTS, caberia ao nosso Programa formatá-la). Para tanto, devemos, primeiramente, identificar dentre as mais importantes ações de governo (em especial as relacionadas à infraestrutura) aquelas que podem, se implementadas mediante os 3/4 da população em idade de trabalhar que as empresas não têm condições ou vontade de empregar, viabilizar a estratégia do “trabalho e renda”. Sua exploração em processos de Adequação Sociotécnica, envolvendo instituições públicas, que garantam a sustentabilidade econômica dos empreendimentos solidários mediante a organização e consolidação de cadeias de produção que lhes permitam disputar o poder de compra do Estado para que a população tenha acesso os bens e serviços que produzem, deve ser um objetivo da política cognitiva a informar nosso Programa.
O quarto, evitando o seguidismo - ao mesmo tempo fácil, inconsistente e inconsequente - de arrolar genericamente como prioridades as fronteiras tecnocientíficas emergentes daquela dinâmica global e os bens e serviços a elas associados, é apoiar, nas instituições públicas, a sua monitoração e a realização de atividades de pesquisa e formação de pessoal especificamente orientadas à implementação da política cognitiva mudancista.
Para concluir, uma última provocação. É verdade que nosso Programa, que lida com um tema crucial da política cognitiva, cuja importância nos contextos nacional e global em que nos inserimos é amplamente reconhecida, e que por causa disso lhe permitiu sua projeção, possui um futuro auspicioso. Independentemente do cenário imediato que venha a se materializar, o merecido prestígio que alguns de seus membros granjearam nos âmbitos em que se formula, implementa e avalia a política cognitiva garante a sua manutenção. A vigência de uma tendência de longo prazo dessa política em que convivem duas características - a sua anomalia genérica e sua atipicidade periférica - permitem essa conjetura. Contribuirá para ela o fortalecimento da rede formada pelos seus ex-alunos que, em qualquer cenário, serão chamados a participar da elaboração da política cognitiva necessária à sua operacionalização.
A antevisão da cena de chegada de um cenário de longo prazo, em que pelo menos a primeira daquelas duas características (sua anomalia) venha ser contestada mediante a desconstrução dos mitos que contaminam a dinâmica tecnocientífica capitalista - o liberal da neutralidade da tecnociência e o dogma do marxismo ortodoxo do determinismo - alerta para a necessidade de uma mudança de rumo no sentido que aqui se tem apontado. Os que querem construir esse cenário desejável terão que empregar seu potencial cognitivo para questionar a pós-verdade forçando um permanente exercício de reflexividade. Em particular, talvez devam dedicar-se a deter a marcha do que metaforicamente tenho denominado Quatro Cavaleiros do Apocalipse - Cientificismo, Produtivismo, Inovacionismo e Empreendedorismo - que pode levá-la ao suicídio institucional.