Artigo publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
Em meados dos anos 2000, duas obras foram publicadas para discutir a globalização e seus efeitos. No livro The world is flat, Thomas L. Friedman[1] argumentava que globalização e o desenvolvimento tecnológico tornariam as divisões históricas e geográficas cada vez mais irrelevantes. Já Richard Florida[2], na obra The world is spiky, sustentava que as mudanças geradas pela globalização estariam longe de nivelar as diferenças entre países, devido às disparidades socioeconômicas. Para Olechnicka, Ploszaj e Celińska-Janowicz[3], as dinâmicas da produção científica estariam mais próximas da lógica de Florida, pois os processos de geração de conhecimento ocorrem, historicamente, de forma concentrada, refletindo disparidades globais, hierarquias e transformações, incluindo aquelas relacionadas com o crescente papel da colaboração científica.
De toda forma, a globalização elevou a interconectividade dos países e possibilitou o aumento do fluxo de ideias e de indivíduos, afetando, também, a dinâmica e os padrões de mobilidade acadêmica internacional[4].
No passado, a mobilidade acadêmica concentrava-se, principalmente, em países europeus e nos Estados Unidos (EUA). Isso decorria do poder econômico e cultural, dos elevados investimentos aportados em pesquisa e inovação, bem como da presença de universidades de prestígio nessas localidades. No entanto, observa-se que o padrão de mobilidade internacional se alterou ao longo do tempo: os EUA, antes um ator central no tabuleiro da mobilidade internacional, têm perdido espaço. Tal cenário decorre do relativo declínio no prestígio das instituições de ensino norte-americanas e do fortalecimento das universidades europeias e asiáticas[4]. O caso asiático é emblemático pela ascensão econômica da China, por alterar o panorama global de destino das mobilidades com os massivos investimentos em pesquisa e inovação em suas universidades. Em vista disso, observa-se que o volume de mobilidade internacional cresceu exponencialmente nas últimas décadas, alterando a própria dinâmica do fluxo, com um maior crescimento da mobilidade entre os próprios países europeus, bem como entre a China e seus vizinhos. Portanto, os padrões observados atualmente indicam uma mudança do comportamento da mobilidade internacional, que anteriormente possuía uma dinâmica bipolar (EUA e Europa) e passou a ter características de uma dinâmica multipolar, com a China ocupando um espaço cada vez mais central.
Além das mudanças nos padrões de mobilidade, estudos indicam que, conforme os cientistas se deslocam para além das fronteiras nacionais, é possível que se deparem com diferentes tipos de barreiras, que podem ser políticas, regulatórias, logísticas ou culturais. Dentre as principais barreiras identificadas, estão: falta de financiamento, restrições ao compartilhamento de material e dados, dificuldade em obter vistos, diferenças nos padrões acadêmicos de diferentes países, preconceito contra acadêmicos de países emergentes ou em desenvolvimento e falta de estímulo, ou mesmo restrições, das próprias instituições ou departamentos aos quais os cientistas estavam vinculados. Mesmo em países com sistemas científicos consolidados, como os EUA, o Reino Unido e a França, cerca de um terço dos cientistas declarou já ter enfrentado algum tipo de barreira[5].
Diante desse cenário, a mobilidade de acadêmicos tem sido alvo de políticas de incentivos crescentes nas últimas décadas, justificadas pelos impactos positivos que ela pode gerar. Em termos gerais, sustenta-se que os cientistas móveis, especialmente aqueles que realizam mobilidade internacional, inserem-se em redes de colaboração mais amplas, acessam infraestrutura e financiamento, são mais produtivos, geram mais impacto científico e têm mais oportunidades para desenvolvem competências pessoais e capital simbólico[6]. É possível concluir, portanto, que a mobilidade pode impactar positivamente na situação ocupacional e na progressão na carreira[7].
É importante destacar que a mobilidade poder ser condicionada por fatores sistêmicos, institucionais e individuais. Os fatores sistêmicos atrelam-se ao quadro contextual dos países de origem e de destino, relacionando-se, por exemplo, às políticas de migração, ao tamanho e maturidade da comunidade acadêmica, às políticas de CT&I, bem como de mobilidade e internacionalização[8]. Também entram nessa categoria as dinâmicas das áreas do conhecimento e das disciplinas. Os fatores institucionais dizem respeito ao perfil e à reputação da instituição na qual o cientista atua (origem) ou para a qual faz a mobilidade (destino), às regras institucionais em relação à endogamia[i], entre outros. Finalmente, os fatores individuais envolvem dois tipos de elementos, quais sejam, as características sociodemográficas (gênero, raça, idade, nacionalidade, idioma, renda etc.) e as características relacionadas com a educação, o estágio de carreira e o “patrimônio acadêmico”, ou seja, as heranças incorporadas por um pesquisador durante seu período de formação — o conhecimento intangível, a formação científica, a rede acadêmica e os recursos financeiros e não financeiros[9].
Dentre esses condicionantes, podemos citar a desigualdade de gênero, pois as mulheres são sub-representadas na mobilidade internacional em todas as áreas do conhecimento[10]; a dificuldade de avançar na carreira, no caso dos cientistas com experiência de mobilidade internacional vinculados a universidades que não possuem regras impedindo a endogamia[11]; a diminuição das movimentações de mobilidade internacional com o avanço da idade na carreira[10].
Há, certamente, muitas oportunidades. Grande parte dos estudos conduzidos em países da Europa apontam que a mobilidade impacta no acesso a financiamentos internacionais e favorece a continuidade da carreira acadêmica. No entanto, os impactos diferem conforme o gênero do pesquisador e a sua área de atuação. Embora saibamos que os impactos da mobilidade acadêmica diferem para mulheres e homens, considerando as diferenças entre as suas trajetórias individuais como pesquisadores e as desvantagens que historicamente as mulheres têm enfrentado, alguns artigos são inconclusivos, enquanto outros apontam evidências de que as mulheres podem alcançar melhores remunerações após a mobilidade acadêmica[12].
É preciso considerar, também, que há limitações nos estudos. As amostras, por exemplo, são de áreas bastante específicas, o que não permite conhecer os impactos da mobilidade para todas as áreas do conhecimento. Nota-se, portanto, que a mobilidade acadêmica é multifacetada: seus impactos podem ser positivos ou negativos dependendo das características e dos processos históricos, seja dos países, das instituições ou da própria trajetória dos pesquisadores.
No Brasil, há uma escassez de estudos sobre o tema. A relevância deste tipo de pesquisa se dá pelo avanço do conhecimento, pois interessa captar os principais padrões empíricos, as mudanças institucionais e a própria composição do tabuleiro da mobilidade acadêmica. Além disso, os resultados desse tipo de pesquisa podem auxiliar na implementação de políticas públicas, no fortalecimento de agências de fomento e na criação de mecanismos voltados à igualdade de gênero na geração de oportunidades de mobilidade acadêmica.
No projeto de pesquisa denominado “Pesquisa da pesquisa e da inovação: indicadores, métodos e evidências de impactos”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e coordenado pelo professor Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, está incluído o estudo dos efeitos da mobilidade e da cooperação internacional na carreira acadêmica. As questões de pesquisa se destinam a avaliar o impacto da mobilidade, nacional e internacional, na situação ocupacional, no tempo para progredir, na formação de redes de cooperação e na obtenção de financiamento para pesquisa, tendo como universo de análise os programas da Fapesp. Para evitar estudos generalistas, pretendemos considerar os fatores individuais, institucionais e sistêmicos, a importância e o efeito do tempo nas trajetórias dos cientistas, e a extensão territorial — para não subestimar os esforços das movimentações domésticas em países de dimensões continentais como o Brasil.
*Ana Maria Carneiro é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas NEPPP/Unicamp e coordenadora associada do Laboratório de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (LabGeopi).
*Ana Maria Nunes Gimenez é pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT/IG/UNICAMP) com bolsa de Pós-doutorado Júnior (CNPq) fornecida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED), IE/UFRJ.
*André Correia Bueno é doutorando em Teoria Econômica pela Unicamp/IE e bolsista TT-IV FAPESP associado do LabGeopi.
*Carolina Mendes é mestre em divulgação científica e cultural pelo Labjor-Unicamp e pesquisadora associada do LabGeopi.
*Gabriela Araujo Tetzner é bacharel em Nutrição pela Faculdade de Ciências Aplicadas FCA/Unicamp e bolsista TT-III FAPESP associada do LabGeopi.
*Julia Yuki Dias Suzuki é graduanda em Licenciatura/Bacharelado em Geografia pela Unicamp e bolsista TT-I FAPESP associada do LabGeopi.
*Luiza Maria Capanema é pesquisadora do Instituto Agronômico e pesquisadora associada do LabGeopi.
[i] Para Horta[13], a endogamia acadêmica (ou endogamia institucional) é uma prática de recrutamento em que as universidades contratam seus egressos do doutorado, seja logo após o término da pós-graduação, seja em período posterior.
Referências
[2] Florida, R. The World Is Spiky: Globalization Has Changed the Economic Playing Field, but Hasn’t Levelled It. Atlantic Monthly, 296(3), 48. 2005.
[3] Olechnicka, A.; Płoszaj, A.; Celińska-Janowicz, D. The Geography of Scientific Collaboration. Routledge Advances in Regional Economics, Science and Policy- eBook, ed. 1, p. 26. 2019.
[4] Gomez, C. J.; Herman, A. C.; Parigi, P. Moving more, but closer: Mapping the growing regionalization of global scientific mobility using ORCID. Journal of Informetrics, v. 14, n. 3, p. 101044. 2020.
[5] Matthews, K. R. W. et al. International scientific collaborative activities and barriers to them in eight societies. Accountability in Research, 27:8, 477-495. 2020.
[6] Netz, N.; Hampel, S.; Aman, V. What effects does international mobility have on scientists’ careers? A systematic review. Research evaluation, v. 29, n. 3, p. 327-351. 2020.
[7] Horta, H.; Yonezawa, A. Going places: Exploring the impact of intra-sectoral mobility on research productivity and communication behaviors in Japanese academia. Asia Pacific Education Review, v. 14, n. 4, p. 537-547. 2013.
[8] Scellato, G.; Franzoni, C.; Stephan, P. Migrant scientists and international networks. Research Policy, v. 44, n. 1, p. 108-120. 2015.
[9] Borenstein, D.; Perlin, M. S.; Imasato, T. The academic inbreeding controversy: Analysis and evidence from Brazil. Journal of Informetrics, v. 16, n. 2, p.1-13. May 2022.
[10] Momeni, F.; Karimi, F.; Mayr, P.; Peters, I.; Dietze, S. The many facets of academic mobility and its impact on scholars’ career. Journal of Informetrics, 16(2), 101280. 2022.
[11] Li, F.; Tang, L. When international mobility meets local connections: Evidence from China, Science and Public Policy, Volume 46, Issue 4, Pages 518–529. August 2019.
[12] Dueñas, D.; Iglesias, C.; Heras, R. The Returns obtained from International Mobility by Doctorate Holders. Some evidence from Spain. International Journal of Business and Social Science, v 04, n. 12, p. 51-66. September 2013.
[13] Horta, H. Deepening our understanding of academic inbreeding effects on research information exchange and scientific output: New insights for academic based research. Higher Education, 65(4), 487–510. 2013.
Imagem de capa: Pixabay