Relatório de Ciências da Unesco sinaliza situação paradoxal no Brasil. Renato Pedrosa e Hernan Chaimovich apontam desafios, conquistas e tendências em P&D em capítulo específico sobre o país.
De acordo com dados do Relatório de Ciências da Unesco que acaba de ser divulgado no Brasil, 80% dos países do mundo investem menos de 1% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Apesar de ter ocorrido um aumento de 20% nos investimentos globais em ciência e tecnologia entre os anos de 2013 e 2018, há uma desigualdade demarcada pela excessiva concentração em alguns países. Desses 20%, 63% representam investimentos de China e Estados Unidos somados. O Brasil dispende cerca de 1,15% de seu PIB em P&D. Entre 2014 e 2018, período analisado no Relatório, o total aplicado em ciência diminuiu quase 16%, com queda de 50% no orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI). No entanto, a resiliência de pesquisadores tem permitido que o número de trabalhos científicos e a contribuição mundial da ciência brasileira não decresça.
Esses e outros dados foram apresentados no dia 11 de junho num webinar de lançamento do Relatório que nessa edição traz o tema “A corrida contra o tempo para um desenvolvimento mais inteligente”. Cerca de 70 autores de 52 países enumeram esforços mundiais em busca de novos paradigmas de desenvolvimento sustentável, como a busca de uma matriz energética mais limpa, e investimentos crescentes em Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI), em particular indústria 4.0, inteligência artificial e internet das coisas. O Brasil é um dos poucos países a ter um capítulo exclusivo, elaborado por Renato Pedrosa, docente aposentado do Instituto de Geociências da Unicamp que hoje coordena o Projeto de Indicadores em CTI da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Desigualdades científicas
A desigualdade de concentração de investimento em pesquisa também se reflete na produção científica, que tem se mostrado muito intensa desde 2014. Cerca de 90% dos pesquisadores e dos gastos com pesquisa e com publicações estão concentradas nos países do G20, do qual o Brasil é membro. Os cientistas brasileiros têm publicado pelo menos três vezes mais do que a proporção média global em temas como ajuda a pequenos produtores de alimentos, uso sustentável de ecossistemas terrestres e estado da biodiversidade terrestre. A produção brasileira em agroecologia é 4,5 vezes a média global e 4,2 vezes no que se refere a pesquisas sobre doenças transmissíveis tropicais. O Brasil, no entanto, produz menos do que a proporção média global em temas sobre energias limpas, salvo pesquisas relacionadas a energia hidrelétrica e biocombustíveis e biomassa. Segundo a Unesco, artigos sobre inteligência artificial (IA) e robótica estão em alta no mundo. Em 2019 foram produzidos 150 mil artigos. Mesmo com sua paradoxal redução de investimento público em ciência, o Brasil é um dos 30 países que lançaram estratégias nacionais de IA em que pretende promover investimentos sustentados em P&D na área.
Outro hiato da produção científica refere-se à questão de gênero. Menos de 30% da pesquisa mundial tem sido feita por mulheres e isso é mais acentuado justamente na área de IA e tecnologia. Segundo a Unesco, menos de 22% dos formados em tecnologia são mulheres. Mas de acordo com Renato Pedrosa, o Brasil mostra evolução positiva. A participação de mulheres no emprego na área de engenharia, por exemplo, corresponde hoje a 23%. Há 20 anos era 14%. “Pode parecer pouco, mas nos Estados Unidos é 16%, no Reino Unido é 12%”, destaca Renato. Mulheres no país são maioria em quase todas as áreas na pós-graduação - representam 54% dos títulos de doutorado. Ciências exatas e engenharias são as exceções. Mesmo assim, “nas engenharias, nos últimos 20 anos, a participação feminina nos títulos de doutorado concedidos passou de 23% para 34%. Quando se compara esse cenário com o resto do mundo, vemos o Brasil bem na frente”, destaca o docente aposentado da Unicamp.
Pedrosa aponta, entretanto, um aspecto negativo: a inovação industrial no Brasil, que em 2017 representava apenas 0,5% do PIB. Os países industrializados e muitos países em desenvolvimento têm pelo menos 1,5% do PIB em investimento de empresas em P&D. Entre 2014 e 2015 o Brasil chegou a 0,6%, mas voltou a 0,5% em 2017. “Esse valor pequeno mostra uma falta de dinamismo, de capacidade das empresas que se reflete em resultados. Mas quando olhamos o número de patentes ou de importação de tecnologia na balança comercial, apenas 13% dos produtos manufaturados no Brasil são de alta tecnologia. Hoje, 35% da balança comercial é de produtos manufaturados. O Brasil participa muito pouco na área de bens de produtos envolvendo tecnologia e isso é um reflexo de que a participação da indústria de transformação no PIB do Brasil hoje está no menor patamar dos últimos 50 anos, em torno de 11-12%, sendo que chegou a mais de 20% há três décadas”, destaca.
Unicamp no Relatório
Dos 20 maiores patenteadores do Brasil no período 2013-2018, 18 eram universidades, algo que representa uma importante mudança em relação à situação de duas décadas atrás, quando a maioria dos líderes eram empresas. “Os dados também mostram que as universidades, principalmente as públicas, vêm ampliando a colaboração científica com a indústria, refletida no aumento dos artigos científicos em colaboração com empresas, além de estimular inovação diretamente, via a incubação de startups de base tecnológica, evidenciando claramente a participação significativa das universidades no desenvolvimento da inovação tecnológica no país”, analisa Renato Pedrosa.
A Unicamp foi citada no Relatório de Ciências da Unesco justamente devido ao número de patentes depositadas no Brasil. Entre 2013 e 2018, a Universidade liderou, junto com USP e UFMG o ranking de pedidos de patentes ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Em 2019, a Universidade alcançou 1087 patentes, ficando atrás apenas da Petrobras. O documento lembra que em 1984 a Unicamp começava a depositar suas primeiras patentes e que cinco anos depois foi criado um escritório de transferência de tecnologia, consolidando em 2003 a Agência de Inovação – Inova. O Relatório destaca também as cerca de 700 empresas consideradas filhas da Unicamp, incluindo as duas startups originárias da Universidade qualificadas como “unicórnios”, aquelas cujo valor de mercado ultrapassam US$ 1 bilhão.
Pandemia
A pandemia da COVID-19 dinamizou os sistemas de produção de conhecimento ao aumentar a colaboração científica internacional, inclusive com participação de cientistas brasileiros. Segundo Marlova Noleto, diretora e representante da Unesco no Brasil, “esse é um momento simbólico ao lançar um relatório de ciência. Simbólico porque cada vez mais reafirmamos nossa aposta no poder da ciência, apesar dos bolsões de negacionismo, da disseminação de desinformação e o ressurgimento de movimentos antivacina. A ciência segue se mostrando potente e vitoriosa”, disse. Marlova lembrou que a pandemia seguirá desafiando a humanidade por um período prolongado e reiterou a importância de medidas não farmacológicas como o uso de máscara, o distanciamento social, a higienização das mãos. “São medidas fundamentais para que possamos continuar impedindo ou pelo menos contribuindo para que a transmissão desse vírus não seja tão alta”, disse. Ela ressaltou que foi graças à ciência que ocorreu o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde. “Sem ciência e sem progresso científico, a humanidade não conseguirá fazer frente aos desafios do nosso tempo”, concluiu.
Acesse o Relatório Completo em inglês e o Resumo executivo e o cenário brasileiro traduzidos para o português.
Texto: Eliane Fonseca Daré
Fotos: Antoninho Perri e Eduardo Cesar (Fapesp)
Edição de imagem: Renan Garcia
Matéria originalmente publicada no Jornal da Unicamp.